Memórias indígenas da peste: epidemias e pandemias na América Latina

Organização: Clovis Antonio Brighenti

PREFÁCIO

A coletânea “Memórias indígenas da peste: epidemias e pandemias na América Latina” reúne textos que têm como eixo estruturante doenças que afetaram/afetam os povos indígenas na América Latina, em dois recortes: o período colonial e pós-colonial e o período recente da pandemia de Covid-19. É possível observar fios condutores em todos os artigos, que coerentemente demonstram que sempre houve, de um lado, projetos de exploração (ou mesmo de extermínio) atingindo os corpos e os territórios indígenas e, de outro, a resistência desses povos. Ouso dizer que se essa obra fosse um filme, cenas passadas se conectariam perfeitamente com planos em flashforward e cenas atuais teriam sentido com tomadas em flashback. Ou seja, as narrativas aqui contidas permitem alternâncias no plano temporal, expondo as continuidades e descontinuidades históricas vividas pelos indígenas frente a doenças.

Os artigos tratam de contextos brasileiros, mexicanos, boliviano e peruano, deixando claro que, no caso das epidemias e outras doenças de longa duração, não é uma maior suscetibilidade e/ou diferença biológica dos indígenas o fator chave para a sua devastação e declínio demográfico, especialmente até a segunda metade do século XX. Segundo as autoras e autores foram (e continuam sendo) as práticas e ações políticas de não indígenas as grandes responsáveis pela produção das desigualdades e vulnerabilidades, propiciando a propagação de doenças que levam a maiores taxas de morbidade e mortalidade desses povos em comparação a outros grupos populacionais.

Os projetos de colonização na América Latina incluíam os deslocamentos forçados dos nativos, o fomento às guerras entre grupos indígenas, a escravização e as doenças (não só a varíola, mas também tuberculose, sarampo, gripe e aquelas provocadas pela falta de comida, entre inúmeras outras), como nos esclarece Elaine Pereira Rocha. Benedito Antonio Genofre Prezia, explorando o papel da igreja católica nos primeiros séculos da colonização no litoral brasileiro, apresenta um paradoxo: ao mesmo tempo que os aldeamentos religiosos davam certa proteção aos indígenas, evitando a escravização pelos portugueses, deixavam as terras nativas liberadas para a exploração dos invasores e propiciavam as contaminações devido às aglomerações. Também, os missionários tinham interesses em “transformar, bloquear e eliminar a liderança política e espiritual” dos indígenas, vendo vantagens quando havia grupos contagiados, segundo Francisco Noelli. Esse autor, ao analisar os registros sobre as doenças em língua Guarani em dois dicionários, compilados pelo missionário Montoya no século XVI, nos chama a atenção para outro paradoxo: os dicionários serviram à época para o projeto colonial e hoje significam para os Guarani o registro detalhado de como seus antepassados tinham um sistema classificatório elaborado e complexo para as doenças que os devastavam. De modo semelhante, Alexandre Camera Varella expõe como os missionários católicos no México do século XVI manipulavam a linguagem, com um discurso que acusava certos grupos sociais, incluindo lideranças indígenas que se opunham à evangelização, como responsáveis pela decadência indígena, em resposta “à diminuição do rebanho de neófitos”. Por outro lado, também como recurso político, os nativos utilizavam a narrativa da natureza fraca para contrapor a exploração pelos colonizadores. Evocando Todorov (1993), “em si, a linguagem não é um instrumento unívoco: serve igualmente à integração no seio da comunidade e à manipulação de outrem” (p. 118).

No caso das doenças, uma das estratégias era o uso deliberado de material contaminado para transmitir os vírus, como nos conta Elaine Pereira Rocha. Contemporaneamente, sem ignorar formas diretas e indiretas que causam doenças agudas e de longa duração, como o uso dos agrotóxicos e dos produtos químicos no garimpo, que contaminam águas, solos, plantas, humanos e não humanos nos territórios indígenas1 , me interessa aqui ressaltar outras maneiras de disseminar agentes etiológicos.

Clovis Antonio Brighenti, analisando o surto de malária entre os Avá-Guarani da região da hidrelétrica de Itaipu no início da década de 1980, nos expõe o papel de um grande projeto desenvolvimentista (a construção da Itaipu Binacional), que ao fazer desaparecer o território Guarani e represar a comunidade em uma pequena faixa de terra entre a lagoa de águas paradas e pútridas da barragem e os latifúndios do agronegócio, tornou-a alvo dos mosquitos transmissores da malária. Seus direitos ignorados pelos representantes estatais e pela Itaipu, aprofundando as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde, porém, não foi a única consequência sinistra, juntando-se o preconceito e o estigma por parte dos não indígenas da região, que os acusaram de serem os propagadores da doença. O autor alerta que na pandemia, novamente os Avá-Guarani foram culpabilizados como sendo os vetores da Covid-19.

No caso do SARS-CoV-2, vírus da Covid-19, podemos trazer outros exemplos para o contexto brasileiro. O governo federal, sob a presidência de Jair Bolsonaro, editou 3.049 normas relacionadas à pandemia entre janeiro e dezembro de 2020, evidenciando, segundo o “Boletim Direitos na Pandemia”2 , que o excesso normativo fragmenta a regulação sanitária de emergência, restringe a atividade legislativa e propicia a judicialização da saúde. Outro aspecto revelado pela compilação e análise das normas editadas é que não houve a participação cidadã no processo de elaboração dessa legislação federal. Conforme os autores, há “uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República” (ASANO et al., 2021, p. 6), somada à ausência da perspectiva de direitos humanos. Para além do normativo, o presidente Jair Bolsonaro tem sido o principal “garoto propaganda” das pautas antivacina, anticiência e antidireitos humanos (direitos de indígenas, de mulheres e de pessoas negras, LGBTIQ+ e que vivem com incapacidades), apregoando o uso de medidas comprovadamente ineficazes contra o coronavírus (como os medicamentos do chamado “kit-Covid” e a imunização de rebanho).

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Florianópolis, 24 de fevereiro de 2022. Eliana Elisabeth Diehl

 

Ano de lançamento

2022

Número de páginas

371

ISBN

978-65-5869-839-5

ISBN [e-book]

978-65-5869-781-7

Organização

Clovis Antonio Brighenti

Formato