Entre cadernos e discursos: uma história recente do ensino da leitura em terras capixabas (2001 a 2008)

Cleonara Maria Schwartz, Fernanda Zanetti Becalli

PREFÁCIO

Ao tomar este livro nas mãos, os leitores e leitoras vão se surpreender, certamente, com a qualidade da escrita, com os diálogos estabelecidos com a literatura acadêmica e com os caminhos escolhidos para explorar um dos suportes mais usados nas salas de aula: os cadernos escolares que até bem pouco tempo estavam à margem na historiografia da educação.

Escrito no momento em que eles saem da zona de penumbra – deixando de ser apenas simples folhas costuradas, grampeadas ou espiraladas ou tão somente portadores de palavras, números e ilustrações – para serem vistos como testemunhos privilegiados da aprendizagem e do exercício da escrita, da escrita de si, de trajetórias escolares, de metodologias de ensino, de práticas pedagógicas e de perspectivas avaliativas, o livro se insere no movimento mais amplo de valorização de documentos aparentemente banais que trazem o acontecer da sala de aula, movimento este que não mais restringe pesquisadores à legislação, às propostas curriculares e aos papéis oficiais.

Em meio à transição da invisibilidade para a centralidade em algumas investigações sobre o fazer docente, os usos do tempo na escola, as permanências e mudanças dos modos de ensinar e aprender, os cadernos escolares aqui mapeados, perscrutados e interrogados permitiram explorar de modo original a história da alfabetização ao entrecruzar com sensibilidade e rigor uma diversidade documental que trata tanto da política como das práticas alfabetizadoras.

Tomados como protagonistas dos fazeres escolares cotidianos, esses cadernos saem dos bastidores instigando um peculiar percurso intelectual e físico que obrigou as autoras a dialogar com uma rica literatura sobre o tema, em especial, os estudos brasileiros, franceses, espanhóis, italianos e argentinos que se voltam para a produção, circulação e usos dos cadernos escolares, bem como a andarilhar por órgãos públicos e inúmeras escolas para encontrar esses documentos efêmeros muitas vezes desprezados, descartados ou esquecidos.

O livro traduz um esforço para seguir pistas deixadas por investigações pretéritas, uma aposta no esgarçamento entre fronteiras disciplinares ou consagrados campos de estudos e um empenho permanente para entrelaçar teoria, metodologia e empiria, o que lhe confere uma grande força argumentativa, visto que foge de esquemas tradicionais que impedem a riqueza das análises do próprio objeto ao longo das páginas. As questões que orientam a investigação, por sua vez, são permanentemente sinalizadas, servindo de fio condutor para as interpretações.

O relato sobre as dificuldades para se chegar aos cadernos escolares encanta pelo trabalho de persistência, de clareza de que não se podia desistir em função das distâncias a percorrer ou quando se esbarrava em depoimentos de que haviam sido perdidos ou abandonados. A garimpagem resultou, assim, de uma rede tecida a muitas mãos. Dela participaram professoras e até mesmo mães de alunos e alunas que, por razões profissionais ou afetivas, se recusam a jogar no lixo e no fogo a vida na escola de seus alunos e filhos e, na medida em que preservam esses papéis, tornam-se guardiãs da memória escolar.

Apesar do expressivo número de cadernos escolares, preservados de modos diversos e dispersos, tinha-se presente que o conjunto reunido resultava de triagem e escolha dos titulares, dos que impediram o descarte e daqueles que pesquisam, o que permitiu uma cuidadosa reflexão sobre a guarda da documentação escolar, para a qual se reclamam políticas públicas de preservação.

O árduo e competente trabalho de localização, classificação e interpretação exigiu uma habilidade importante para todo bom pesquisador: conquistar a confiança de titulares de cobiçados documentos. Implicou, assim, escrever, palestrar, viajar, conversar. Tal habilidade envolveu sedução e seriedade, o que permitiu o mergulho em arquivos pessoais e institucionais. Não se pode perder de vista que o trabalho está enraizado em um grupo 11 de pesquisa de longa tradição de estudos sobre a história da alfabetização capixaba e assim se beneficia do acúmulo do conhecimento coletivamente produzido e das parcerias estabelecidas com as redes públicas de ensino que abrem caminhos para se chegar aos que os preservam distantes dos olhares indiscretos dos pesquisadores. Também se beneficia do crescente interesse pela história da alfabetização, em cujos estudos se observa que cada vez mais se elegem os cadernos escolares como objeto ou fonte de pesquisa, como se pode ver em eventos científicos da área e nos centros de memória e documentação constituídos nos últimos anos, que reúnem ainda livros, manuais e cartilhas de alfabetização.

É importante observar que a busca de cadernos escolares esteve orientada pela compreensão de seus limites e possibilidades. Por mais instigantes que possam parecer para o estudo das práticas escolares e, aqui, das práticas alfabetizadoras, tinha-se presente que eles também omitem, silenciam, excluem. Não dão conta de todo o acontecer na sala de aula, do não aprendido ou do oralizado. A compreensão de que nenhum documento fala sozinho e precisa, além de perguntas, de cruzamento com outros para contextualizar, intuir motivações, atentar ao escrito e até mesmo aos silêncios inspirou a busca de outros tantos velhos papéis da escola, muitos deles ainda pouco valorizados.

Os encontros com os cadernos escolares permitiram entrar pelas salas de aula, vasculhar práticas e interrogar políticas, como se pode constatar na arquitetura do livro que expressa uma delicada e sensível operação historiográfica, configurando-se assim como um convite para adentrar também pelas trajetórias de professoras alfabetizadoras, bem como pelos discursos sobre a leitura, a leitura compartilhada, a leitura de textos, a leitura de texto que se sabe de cor e a leitura de sílabas e frases.

Neste momento no qual a importância da escola pública está em xeque, este livro é mais do que nunca uma instigante oportunidade de reflexão sobre o imprescindível e relevante papel dos professores e professoras que, nas salas de aula, se apropriam 12 das políticas e inventam novos modos de ensinar a ler, escrever, contar e interpretar as palavras e o mundo.

Ana Chrystina Mignot
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Educação 2021

Ano de lançamento

2021

ISBN

978-65-5869-593-6

ISBN [e-book]

978-65-5869-594-3

Número de páginas

279

Formato