Ritmos infantis: tecidos de uma paisagem interior

Clara Eslava, Juan José Eslava, Maria Isabel Cabanellas, Raquel Polonio

R$42.00

Apresentação à edição brasileira

A expressão reta não sonha.

Não use o traço acostumado.

A força de um artista vem das suas derrotas.

Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.

Arte não tem pensa:

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.

É preciso transver o mundo.

Manoel de Barros

“As lições de R.Q.”

Livro do Nada

Este é um livro que nos foi apresentado pela Associação de Professores Rosa Sensat, de Barcelona. Não é o primeiro presente que nos dá a Rosa Sensat, como amorosamente se costuma chamar essa associação que, desde a década de 1960, trabalha com a formação continuada de professores e professoras melhorando a qualidade da educação das crianças pequenas.

Já traduzimos, por sugestão da então presidente da Associação, Irene Balaguer, o Educar os três primeiros anos: a experiência de Loczy, a primeira publicação no Brasil que nos introduz ao trabalho pedagógico conhecido como abordagem Pikler-Loczy.

Por iniciativa da mesma Irene Balaguer, seguindo a publicação já histórica da Revista In-fan-cia, da Associação, foi criada a Revista Infancia Latinoamericana, que desde abril de 2011 passou a ser publicada também em português e disponibilizada gratuitamente no site da Associação.

Desta vez, pinçamos este livro que você tem em mãos. Um livro que fala de bebês “fazendo arte”, descobrindo os objetos e materiais plásticos e sonoros que são apresentados a eles; mas mais que isso, descobrindo o conhecimento, descobrindo o outro e a si mesmos, descobrindo o mundo e os outros e, nos outros, descobrindo a si mesmos.

Este é um livro que resulta de um projeto de pesquisa, mas não espere um livro que descreve ações de bebês e analisa o que foi visto. Este livro fala de como os adultos podem estar com os bebês, tendo um profundo respeito a eles, lendo seus gestos, seus tempos, suas emoções, as suas capacidades…

Vygotsky, em suas Obras Escolhidas, desafia a ciência de seu tempo a enxergar, nas crianças pequenas, as suas positividades, suas capacidades em formação, superando, assim, a atitude de apontar as ausências de capacidades das crianças quando comparadas aos adultos. Esse desafio está presente ainda hoje. Ainda que no nível do discurso, apontemos nossa crença e compromisso com crianças potentes, capazes, que aprendem desde que nascem em todas as relações que estabelecem, nossas práticas ainda estão em processo de construção para encontra-se com esse discurso. Ainda estamos aprendendo a tratar os bebês e crianças pequenas com o respeito que merecem em seu processo de descoberta do mundo e no delicado, complexo e, por que não dizer, encantador processo de construção de sua personalidade.

Este livro é estimulo e uma ferramenta para essa construção de um olhar adulto que se funde com a infância e, por isso, a percebe nessa relação em que o mundo se abre para ela e ela se abre para o mundo. É um chamado para olharmos as capacidades infantis ignoradas, de um modo geral, porque nos faltam ferramentas para enxergá-las.

Com a leitura, descobrimos que elas podem ser evidenciadas pelos movimentos corporais já dos pequenininhos, por gestos sutis e outros nem tanto, por suas vocalizações, suas relações com os outros, enfim, no conjunto de elementos que são incorporados no universo infantil e a partir de tudo o que lhes apresentamos. Por que não se trata de olhar ações fragmentadas, mas perceber o manifesto e o oculto, os elementos no todo. E para perceber isso, não apenas as sequências de ações são válidas, mas também suas interrupções e suas retomadas, as mudanças sutis de movimento, os olhares, todos indicadores de intenções… basta ter olhos para ver e atitude para escutar.

Atentos à ação externa das crianças, os pesquisadores que produziram este livro, nos ensinam a ver o que elas podem estar construindo internamente. Nos convidam a ler os desejos de comunicação das crianças. Para isso, consideram que aquilo que observamos externamente é apenas uma pequena parte do que ocorre e nos desafiam a abandonar as formas unilaterais de diálogo – o monólogo adulto tão fortemente presente ainda em nossas escolas de educação infantil e ainda mais presente quando se trata de bebês – e a adotar o diálogo com as crianças. Esse diálogo – como metáfora – prescinde muitas vezes de palavras… se manifesta no olhar, na espera pelos tempos do bebê, na valorização de suas possibilidades e de suas habilidades, no acompanhamento do gesto, no compartilhamento do prazer da criança na exploração e descoberta dos materiais e no encontro com as outras crianças, na atenção às interrupções e às retomadas das ações. Esse caminho do diálogo com os pequenininhos, já iniciamos com as referências da abordagem Pikler-Loczy que temos conhecido nas últimas duas décadas. Nesse sentido, esta pesquisa, como vocês poderão perceber, é uma continuidade e aprofundamento deste diálogo.

Este livro é um convite, também, para rompermos com as simplificações “comuns” na infância, quando não somos capazes de estar[SLV1] em sintonia com as crianças, quando não percebemos a sintonia que se estabelece entre elas mesmas nos momentos de encontro, quando não percebemos a empatia que se estabelece quando uma delas está em sofrimento, quando não aprendemos a valorizar seus momentos de equilíbrio e desequilíbrio, a aceitar suas alegrias, sua curiosidade, sua dependência e necessidade do adulto e, ao mesmo tempo, sua necessidade de autonomia, de tempo e de tempo e de tempo… um tempo diferente do tempo dos adultos.

As crianças sofrem hoje, desde muito pequenas, com os anseios de muitas famílias e escolas que creem enfrentar as contradições sociais inserindo as crianças desde pequenininhas numa “corrida para chegar primeiro” e que se configura, de fato, como uma “corrida pra lugar nenhum”[1]. É a sociedade do cansaço – de que fala Byung-Chul Han – que abrevia e nos impede de ver o tempo da infância. Cabe a nós romper com essa pressa que adota caminhos equivocados. Certamente cabe ao adulto e à escola potencializar o desenvolvimento humano na infância, mas a maneira de fazer isso não é transformando os bebês em pré-escolares e as crianças pré-escolares em escolares, e sim aprofundando as formas da atividade plástica, prática e lúdica, como afirma Zaporozhetz, um pesquisador russo da Escola de Vygotsky. Implícita nessa afirmação, está a ideia central e três desafios à ação dos adultos – família ou professores – colocados por este livro: precisamos dar tempo às crianças, precisamos apresentar para as crianças o mais elaborado da nossa cultura, precisamos aprender a escutar.

O tempo das crianças é diferente do tempo dos adultos. É o tempo que se estende, que se interrompe e que volta a ser retomado, tempo para perceber possibilidades, estabelecer conexões, observar, estabelecer hipóteses, experimentar essas hipóteses, fazer teorias, aprender. Só o olhar atento do adulto será capaz da escuta – no sentido metafórico – necessária para acompanhar as crianças, apresentando o mundo para elas e abrindo – e não fechando – o campo de suas possibilidades. Desse ponto de vista, este livro traz elementos – não receitas – que podem orientar atitudes que possibilitem um diálogo que precisa ser aberto entre os educadores e o mundo das artes (plásticas, musical, arquitetônicas) para enriquecer as propostas que podem levar a criança a se formar para si uma sensibilidade estética, como afirma Isabel Cabanellas ao discutir os modos de aprender das crianças, neste livro.

Desse ponto de vista, uma contribuição para compreender esse processo de aprendizagem do mundo vem de Vygotsky, quando afirma a necessidade de apresentarmos às crianças, o mais elaborado da cultura. O autor lembra a especificidade dos seres humanos de nascerem num universo cultural em que as formas mais elaboradas da produção humana estão dadas no meio. Assim sendo, as formas iniciais de expressão do bebê, por exemplo, já convivem com as formas mais elaboradas da expressão humana e estas não apenas estão presentes no meio, mas influenciam todo o desenvolvimento da criança. Por isso, quanto mais elaboradas são as linguagens e a produção cultural que apresentamos aos pequenos, mais possibilidades de formação de uma sensibilidade estética lhes possibilitamos, a exemplo do que faz Juan José Eslava, ao discutir os tempos de escuta, no capítulo 4.

Sobretudo, o conjunto dos estudos publicados aqui, oferece ao leitor brasileiro dados significativos e profundos sobre a imagem da infância que temos buscado construir e que podemos construir a partir dos próprios bebês e das crianças pequenas – e podemos estender às crianças maiores.

Enfim, nem receitas, nem conclusões generalizáveis formuladas para que tenhamos esquemas facilitadores para agir no mundo da infância. O que aprendemos com essa leitura é que devemos aprender a ler nas entrelinhas as mensagens que os bebês nos enviam: para compartilhar descobertas, para capturar nossos cuidados, para nos entender, para entender o mundo que se abre para eles.

Por tudo isso, não há como não estabelecer um confronto com a atual triste realidade didática das escolas infantis, seja no campo musical, no campo da atividade plástica, no tratamento do tempo das crianças. À medida que vamos avançando na leitura – que muitas vezes é densa para um ouvido cotidiano, mas convidativa a romper com a leitura simplificada -, vamos percebendo a necessidade de rompermos com a cultura escolar tradicional que tem apostado na permanência excessiva daquilo que se sido transmitido por décadas e que, com cara de cultura escolar infantil, apresenta uma cultura simplista, uma cultura comercial que subestima as possibilidades das crianças e empobrece seu encontro com o mundo da cultura – fonte das qualidades humanas, como afirma Vygotsky (2018). Como afirmam os autores, dada a grande variedade da produção musical atual no Brasil e em outras partes do mundo, neste e em outros tempos, essa forte continuidade do mesmo impede que as crianças avancem em direção a outras formas de ouvir, e, com isso, avancem na formação de outros desejos de conhecer e de outras formas de expressão.

Esperamos que você leitor deleite-se com a leitura e aceite o convite para olhar os bebês e as crianças pequenas com empatia, para dar tempo às crianças em seu processo de se constituir como pessoa…em seu encontro com o mundo e para dar a si mesmo, também, o tempo de reviver a própria infância.

São Paulo e São Carlos,

Maio de 2020, ficando em casa.

Sonia Larrubia Valverde

Suely Amaral Mello

Ano de lançamento

2020

Formato

ISBN

978-65-86101-53-9

Número de páginas

219

Organização

Clara Eslava, Juan José Eslava, Maria Isabel Cabanellas, Raquel Polonio