Educação: tensões e desafios contemporâneos

Fábio Antonio Gabriel, Flávia Wegrzyn Magrinelli Martinez

PREFÁCIO

Denúncia e anúncio, luta, utopia e sonho: caminhos que nos movem esperançosamente em tempos incertos!

Ao refletir sobre a escrita desse prefácio, analiso a considerável pertinência que o título da obra apresenta no contexto histórico atual. Seus textos chegam às minhas mãos para leitura em um momento extremamente delicado e carregado de angústias e mobilizações no mundo todo: a situação de pandemia do coronavírus – SARS-CoV-2 – caracterizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional que, até esse momento, reúne quase 163 mil infectados no Brasil e tem provocado mais de 11 mil mortes[1]. Impossível seria não estabelecer correspondência entre os temas tratados na obra e o problema mundial, sofrido de forma terrível pela população, enquanto alguns poderes municipais e estaduais flexibilizam as medidas de distanciamento social precocemente, em acordo com o governo federal que se desresponsabiliza pelo controle da pandemia.

Resgatando as críticas feitas pelos autores dos textos à nova reordenação do capitalismo, engendrado na sociedade da informação e amparado pelas forças políticas e ideológicas do neoliberalismo, em amplo processo de globalização, não há como ignorar as relações entre os interesses econômicos dos grupos mais ricos e a pressão pelo descumprimento do isolamento social[2] que evita o contágio, em favor do ritmo acelerado de acumulação do capital e em detrimento da vida de quem não detém a opção de se proteger. Não há segurança para quem necessita vender sua força de trabalho e arriscar-se dia a dia no contato direto com outras pessoas, para quem vive em situações precárias ou desumanas de existência ou quem se encontra na linha de frente do combate à doença.

Mas, ao mesmo tempo em que assistimos à manifestação de comportamentos mesquinhos por parte de um grupo econômico, em defesa dos próprios interesses, menosprezando o risco de morte da maioria pobre, também presenciamos a disponibilidade de outro grupo em criar formas de manutenção de seus negócios sem esmagar a vida, mostrando que a criatividade pode eliminar a falsa dualidade entre saúde X economia. Nesse sentido, contrariando a ética do mercado, presenciamos ações de solidariedade crescendo em diferentes meios, entre pessoas que reconhecem a igualdade do direito à vida com dignidade para todos e todas, e praticam tais ações solidárias amparados e amparadas por uma ética universal dos seres humanos, voltada à humanização e segundo a qual não podemos ser se o outro também não é. (FREIRE, 2005)[3]. Diante das contradições presenciadas nesse movimento histórico, no qual nos encontramos totalmente envolvidos e envolvidas, mergulho nos temas discutidos nessa obra repleta de emoção, desafios e com olhar criticamente aguçado, alimentado pelo referencial que me impulsiona nos estudos e na caminhada como ser humano – o pensamento progressista de Paulo Freire. A emoção é despertada pelo prazer de receber o convite para elaboração de um prefácio, que considero de grande responsabilidade e que revela a confiança depositada em mim pelas autoras e autores, pela organizadora e organizadores da obra. Os desafios se encontram no esforço de alinhavar as discussões instigantes de cada capítulo à eclosão do momento histórico que vivenciamos, apesar de não ter sido previsto na época em que seus autores e autoras construíam suas proposições.

As questões problematizadas em cada capítulo somam-se a outras que, mesmo diante de um momento angustiante de crise sanitária nacional e internacional, escancaram nitidamente os diversos ataques à democracia, o desmonte das instituições públicas, o abandono do Sistema Único de Saúde, o desrespeito à vida pela banalização da morte em massa, as agressões à imprensa questionadora, o oportunismo de grupos privados do mercado educacional sedentos pela venda de tecnologias e metodologias aos sistemas públicos de ensino, diante da situação de isolamento dos(as) estudantes, o desinvestimento nas pesquisas, especialmente aquelas relacionadas às Ciências Humanas, a destruição dos direitos trabalhistas e previdenciários, entre outras atrocidades que provocam o crescente aprofundamento das desigualdades.

A perversidade exercida pelos representantes da extrema direita aniquila conquistas efetivadas em décadas de lutas por direitos e instaura uma cadeia de retrocessos históricos e sociais, propagando valores contrários à dignidade humana, pela incitação ao ódio entre grupos de divergentes posturas políticas, ao preconceito em relação aos diferentes, à coisificação do ser humano tomado como pura mão de obra substituível, mostrando que em cada época surgem novos temas que se misturam a velhos temas, os quais insistem em permanecer. Tais retrocessos e manifestações neoconservadoras nos colocam a exigência da desocultação da verdade e a necessidade ontológica da esperança, movida pela indignação, a raiva e o amor, que nos impedem de sucumbir no fatalismo. (FREIRE, 2003)[4].

Em sua última obra[5], Paulo Freire destaca a importância do sonho, da utopia e da esperança que habitam em nós quando enxergamos a possibilidade de um amanhã e nos engajamos em um processo de emersão do hoje, sensibilizados e sensibilizadas pelos problemas que nos assombram provocados pelas injustiças exacerbadas de seres humanos capazes de transgredir a ética, porque impregnados(as) tão somente pela ética do lucro. Para estes, o único amanhã é aquele em que somente eles e elas, extasiados(as) pela frieza e indiferença aos outros, podem viver dignamente, comer bem, dormir em paz, estudar, amar, sonhar, escolher, perguntar, superar o medo. Para Freire, pensar o amanhã significa profetizar, tornando-se presença no mundo que se faz hoje. Presença que lê esse mundo, busca inteligir sobre ele, ouve, analisa, investiga seus temas, dialoga sobre eles, movendo-se numa curiosidade epistemológica, atento(a) ao que lhe chega por meio de sua experiência histórico-social, pela ciência, pelos avanços tecnológicos. Desta leitura do hoje, faz parte a intensidade com que avançam a tecnologia e a ciência, assim como a compreensão que o sujeito que profetiza tenha da natureza humana. Nesse sentido, o pensamento profético, que é utópico também, se apropria da realidade concreta para desvelá-la, o que implica a denúncia de como temos vivido e o anúncio de como poderemos viver, construindo um mundo melhor, o mundo que pode vir a ser, sem fatalismos ou determinismos, posto que o futuro não é inexorável, mas problemático. Como seres históricos, que têm historicidade e, portanto, se constituem neste mundo, com o mundo e com os outros, ao mesmo tempo em que podem transformá-lo, somos seres inacabados, conscientes desse inacabamento, capazes de discernir, optar e decidir. Somos seres éticos, seres da busca, da superação daquilo que oprime, que se reconhecem como seres condicionados, nunca determinados e, portanto, esperançosos.

A ideologia neoliberal, tão bem criticada pelos autores e autoras desse livro, alicerçada na ética do mercado, destaca-se pela propagação da morte de nossos sonhos e da utopia que nos chama à luta, buscando imobilizar a História e sufocar nossas esperanças, reduzindo o futuro à manutenção do presente, que assegura privilégios a poucas pessoas enquanto faz sucumbir à miséria e à morte a grande maioria delas, que não tem como se assegurar. De acordo com Freire, nenhuma realidade é porque assim tem que ser, sem que haja o que fazer para que seja diferente. Se o sonho e a utopia morrem, a prática educativa se perde no mero tecnicismo, sem a denúncia da realidade cruel e o anúncio de uma realidade menos feia, menos injusta, menos desumana.

Assumindo o papel de educadoras e educadores comprometidos(as) politicamente com uma educação crítica, profética, que problematiza os temas atuais, levantando preocupações com um mundo melhor, com a dignidade humana daqueles e daquelas que trabalham pela educação, com a construção de instituições de ensino que resistam à burocratização, à privatização, às políticas de exceção e desmonte dos serviços públicos, e contra a manipulação exercida pela mídia, que forja outras realidades desarticuladas do movimento histórico, as autoras e autores desse livro levantam importantes denúncias.

[…]

Dra. Lucimara Cristina de Paula
Professora do curso de Pedagogia da UEPG
Professora do PPGE – UEPGMaio de 2020

Notas de rodapé

1- Dados do Ministério da Saúde no Brasil, atualizados em 11 de maio de 2020.Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/. Acesso em: 11 de maio de 2020.

2- Até a presente data, a ciência não encontrou uma vacina para imunizar a população contra o vírus. O distanciamento social tem sido fortemente recomendado para conter a velocidade do contágio e o consequente colapso do sistema de saúde.

3- FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’gua, 2005.

4- FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

5- FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. Trata-se de obra inacabada devido ao falecimento do autor, que foi publicada após compilação de seus escritos pela viúva Nita Freire.

Ano de lançamento

2020

ISBN

978-65-86101-58-4

ISBN [e-book]

978-65-86101-59-1

Número de páginas

264

Organização

Fábio Antonio Gabriel, Flávia Wegrzyn Magrinelli Martinez

Formato