Estudos da tradução algumas vertentes

Antonia de Jesus Sales, Bill Bob Adonis Arinos Lima e Sousa

PREFÁCIO

Tito Lívio Cruz Romão1

Nas últimas cinco décadas, desde que James S. Holmes concebeu e apresentou o termo Translation Studies (1972), adotado no Brasil como Estudos da Tradução, inúmeras têm sido as pesquisas, nos mais diferentes países, sobre temas envolvendo o ato de traduzir e a tradução em perspectiva prática e/ou teórica. Ao longo dos séculos, muitas das polêmicas sobre traduzir/tradução foram conduzidas com base em questões que abordavam clássicas dualidades ainda hoje recorrentes: tradução literal versus tradução conforme o sentido, fidelidade versus infidelidade, tradução estrangeirizadora versus tradução domesticadora etc. Até os anos 1970, muitas contribuições foram dadas no campo da tradução, mas que ora eram centradas em aspectos linguísticos (JAKOBSON, [1976] 1995; CATFORD, [1965] 1980; VINAY & DARBELNET, 1977; VÁZQUEZ-AYORA, 1977), ora eram apoiadas em parâmetros literários (RÓNAI, [1952] 2012; MOUNIN, 1975; NIDA, 1964; KÖHLER, 1967).

A pesquisadora alemã Radegundis Stolze ([1994] 2011), por exemplo, reconhece a existência não de uma teoria da tradução, mas de diversas “teorias da tradução”, como bem indica o título de seu livro. Tais teorias têm-se dedicado aos mais variados temas em torno do ato de traduzir e do produto tradução, perscrutando não só aspectos de natureza marcadamente linguística ou literária mas também abrangendo análises descritivas e/ou comparativas relevantes para a tradução, didática da tradução, formação de tradutores, bem como pesquisas sobre especificidades culturais, sociologia da tradução, ética tradutória etc. No bojo das discussões que vêm sendo travadas no âmbito teórico-prático dos Estudos da Tradução, muitos olhares também se têm voltado, cada vez mais, para as ligações existentes entre o ensino de tradução e o ensino de línguas estrangeiras.

Lançando um olhar sobre as histórias quiçá mais remotas de que se tem notícia sobre polêmicas ou eventos envolvendo reflexões teóricas sobre o ato de traduzir, podem-se apresentar pelo menos dois momentos em que eruditos encarregados da tarefa de traduzir realizaram um trabalho em que atuavam, simultaneamente, como tradutores, literatos, filólogos e, de certa forma, teóricos da tradução. O primeiro exemplo remonta a Marco Túlio Cícero (106-43 a. C.):

Traduzi, então, dos áticos, dois discursos notáveis e contrários entre si, um de Ésquino, outro de Demóstenes, autores dos mais eloquentes. E não os traduzi como um tradutor, mas como um orador, usando os mesmos argumentos, tanto na sua forma quanto nas suas figuras de linguagem, em termos adequados à nossa cultura. (CÍCERO, 2011, p. 11)

Ao discorrer, no ano de 46 a.C., sobre o termo interpres, em sua obra De optimo genere oratorum [O melhor gênero de oradores], Cícero antecipou, em vários séculos, aspectos essenciais do debate em torno do traduzir que levariam o hermeneuta e teólogo alemão Friedrich D. E. Schleiermacher, tradutor das obras de Platão, a escrever seu célebre ensaio Sobre os diferentes métodos de traduzir (SCHLEIERMACHER, 2011). Para o grande orador romano, imitar os gregos era uma forma de desenvolver a própria arte retórica dos romanos.

O segundo exemplo vem de São Jerônimo (347 d.C.-419/420), padroeiro dos tradutores, que ganhou relevo especial ao traduzir a Vulgata, a Bíblia reconhecidamente autêntica traduzida para o latim. Em sua qualidade de tradutor afeito ao modelo ciceroniano, 9 houve, porém, quem lhe impingisse a pecha de distanciar-se demasiadamente do texto original, quando sua tentativa, na verdade, fora tornar o texto palatável em língua latina (JERÔNIMO, 1995).

Voltando ao ano de 1972, cumpre reconhecer que Holmes, ao apresentar seu texto intitulado The Name and Nature of Translation Studies, durante o 3º Congresso de Linguística Aplicada realizado em Copenhague entre os dias 21 e 26 de agosto de 1972, desempenhou um papel decisivo na evolução dos Estudos da Tradução. Entre as décadas de 1980 e 2000, as pesquisas inovadoras desenvolvidas nessa área foram ganhando cada vez mais terreno em diversas universidades europeias. Sobretudo naquelas IES2 em que já havia uma tradição de Cursos de Formação de Tradutores e Intérpretes autônomos em relação aos Cursos de Letras tradicionais, os Estudos da Tradução puderam consolidar-se. Além disso, mediante colaborações com IES de outros países, as novas ideias concebidas no seio da disciplina recém-criada também puderam ser apresentadas e exportadas para outros países. No Brasil, viu-se, principalmente a partir dos anos 1980/1990, um crescimento inequívoco dos Estudos da Tradução, em primeiro lugar com a realização de congressos nacionais periódicos e, posteriormente, com a criação de Cursos de Pós-Graduação na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal de Santa Catarina, e, em datas mais recentes, na Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Ceará. Ademais, foram criados ou consolidados Cursos de Bacharelado em Tradução em diferentes instituições (UFRGS, USP, UFSC, UFU, UFPB, entre outras).

Em seu texto, Holmes destacava um fator que entendia como obstáculo para a realização de uma “utopia disciplinar” (HOLMES, 1972, p. 68) no campo da teoria ou de uma suposta ciência da tradução: que nome dar àquela disciplina de natureza empírica – ou àquela ampla área de estudos e pesquisas –, a qual, durante séculos, sempre apresentara pontos tangenciais com as mais diversas disciplinas, desde a Linguística e a Literatura, passando pela Filosofia da Linguagem, a Filologia, a Retórica etc. e, mais modernamente, também pela Linguística Computacional, entre muitas outras áreas. Um segundo impedimento, segundo Holmes, residia na falta de um “consenso sobre o objetivo e a estrutura da disciplina” (HOLMES, 1972, p. 71). Não obstante, sublinhou, em seu artigo, dois objetivos principais a serem perseguidos pelos Estudos da Tradução enquanto campo de pura pesquisa: “(1) descrever os fenômenos de traduzir e de tradução(-ções), na medida em que se manifestam no mundo de nossa experiência; e (2) estabelecer princípios gerais mediante os quais esses fenômenos podem ser explicados e previstos” (HOLMES, 1972, p. 71). Holmes designou os dois campos daí decorrentes como Estudos Descritivos da Tradução e Estudos Teóricos da Tradução.

Paralelamente às suas reflexões sobre a nova disciplina em sentido puro, Holmes também pôs em relevo, no âmbito dos Estudos Aplicados da Tradução, as seguintes questões de cunho didático-pedagógico: formação de tradutores, métodos de ensino, técnicas de avaliação e planejamento curricular. É importante lembrar que, ao largo das novidades anunciadas pelos Estudos da Tradução de Holmes, na década de 1970 ainda estava em plena vigência uma posição contrária à inclusão de exercícios de tradução no ensino de línguas estrangeiras (LE). Esse fenômeno, que começara por volta das décadas de 1940/50, ainda deveria estenderse até finais dos anos 1990. Tanto os responsáveis pelo planejamento de manuais didáticos quanto os professores de LE demonstravam um zelo excessivo para que a tradução, como estratégia de ensino, fosse e permanecesse abolida do ensino de LE. Se, por um lado, a formação de tradutores passava, necessariamente, pela aprendizagem de idiomas, a área de ensino de LE, sobretudo sob a influência dos Métodos Audiolingual (MAL) e Audiovisual (MAV), descartava, por completo, que se 11 recorresse a atividades de tradução como técnica adicional de aprendizagem. Baseando-se, por um lado, na Linguística Estruturalista e, por outro, no Behaviorismo Verbal de Burrhus F. Skinner, os guardiões desses métodos de ensino rechaçavam a tradução, por entenderem que uma LE deveria ser aprendida mediante repetição e imitação, a fim de que os aprendizes internalizassem padrões linguísticos que mais tarde utilizariam em processos comunicativos diretamente no idioma estrangeiro (NEUNER; HUNFELD, 2002, p.137). Em especial, havia um temor, decerto, de que se voltasse a empregar técnicas de ensino baseadas no Método Gramática-Tradução (MGT), que, havia muito tempo, estava restrito apenas ao ensino das chamadas línguas clássicas. Talvez como forma de resguardar-se do perigo representado pela tradução, os defensores do MAL/MAV afirmavam que “a tradução não é um substituto equivalente para o uso ativo da língua” (NEUNER; HUNFELD, 2002, p.138).

Foi somente após alguns anos de vigência da chamada Didática Comunicativa (DC) que, no início dos anos 2000, a didática do ensino de LE pôde celebrar uma importante mudança levada a cabo graças ao Conselho da Europa, entidade composta por 47 estados-membros, inclusive os 27 países integrantes da União Europeia. O Conselho da Europa patrocinou a concepção do chamado Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR), que, como consta numa edição portuguesa sobre esse tema, tem as seguintes características primordiais:

O Quadro Europeu Comum de Referência (QECR) fornece uma base comum para a elaboração de programas de línguas, linhas de orientação curriculares, exames, manuais etc., na Europa. Descreve exaustivamente aquilo que os aprendizes de uma língua têm de aprender para serem capazes de comunicar nessa língua e quais os conhecimentos e capacidades que têm de desenvolver para serem eficazes na sua atuação. A descrição abrange também o contexto cultural dessa mesma língua. O QECR define, ainda, os níveis de proficiência que permitem medir os progressos dos aprendizes em todas as etapas da aprendizagem e ao longo da vida.3 (QECR, 2001, p. 19)

[…]

3 As citações aqui feitas com base na versão portuguesa do texto que acompanha o QECR (2001) contêm alterações relativas às escolhas ortográficas e semânticas divergentes entre Portugal e Brasil

2 Para ilustrar, citem-se as Universidades de Heidelberg, Mainz/Germersheim, Saarbrücken, Leipzig (todas na Alemanha), as Universidades de Viena (Áustria) e Genebra (Suíça), e a ESIT (École Supérieure d’Interprètes et de Traducteurs, Sorbonne Nouvelle, Paris), dentre outras.

1 Doutor em Estudos da Tradução (UFSC), mestre em Linguística Aplicada/Tradução (Universidade de Mainz/Germersheim, Alemanha), especialista em Interpretação de Conferências (Universidade de Heidelberg, Alemanha), graduado em Letras – Francês, Inglês e Português (UECE); professor de Alemão do Curso de Letras da UFC e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras/Literatura Comparada da UFC; tradutor público e intérprete comercial de alemão pela Junta Comercial do Estado do Ceará.

Ano de lançamento

2021

ISBN [e-book]

978-65-5869-162-4

Número de páginas

104

Organização

Antonia de Jesus Sales, Bill Bob Adonis Arinos Lima e Sousa

Formato