Figurações, mulheres e outras insolências

Catia Paranhos Martins, Jenniffer Simpson dos Santos, Júlia Medeiros Pereira

Mulheres incompletas e outras insolências

Rochele Fellini Fachinetto, UFRGS.
Rosimeri Aquino da Silva, UFRGS.

A oportunidade de comentarmos sobre os ensaios visuais e escritos, realizados por estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, na disciplina Relações de Gênero, acionou, em nós, memórias relativas a diferentes estudos que temos realizado sobre a temática das violências contra as mulheres, assim como debates em torno das lutas pelos direitos delas. Também trouxe à lembrança situações, experiências de nossas vidas vividas, nossas práticas, por assim dizer, confirmando a tese de que podemos sim ser afetadas pela teoria e que a exigência de distanciamento dos objetos de conhecimento se constitui como mais um equívoco do que se convencionou chamar de ciência moderna. Nossos sentidos se aguçam, especialmente quando somos capturadas pela exigência de pensarmos sobre opressões e resistências e de como é necessário encontrar modos de expressá-las. Sobre algumas dessas memórias vamos discorrer neste escrito.

Uma conhecida disse que um dia havia sido qualificada por um homem como uma mulher completa. Afinal, ela tinha sido capaz, em sua longa vida, de constituir uma boa família, criar filhos decentes, ter uma profissão estável, cozinhar como ninguém, manter todos unidos, entender o “jeito dos homens”, manter a casa arrumada, ter sempre fé em um poder divino e superior, organizar todos os aniversários, compreender e perdoar violências domésticas. Outros verbos, certamente, podem somar-se a esses, para essa e para outras mulheres, pois são muitas as formas, os argumentos, os discursos, as representações acionadas para defini-las.

É de amplo conhecimento a persistência de várias compreensões sobre quem seriam aquelas pessoas que poderiam ser tidas como verdadeiramente mulheres, sedutoras (porém recatadas), exitosas frente às exigências do mundo do trabalho atual, belas, generosas, maternais, cuidadoras etc. As representações produzem significados sobre nossas existências e estão presentes nos mais diversos produtos culturais: nas novelas, nos filmes, nas músicas, nas propagandas, na literatura, nos sites, entre outros. De imediato, poderíamos pensar que acordar com essa espécie de identidade hegemônica, posta determinantemente e invariavelmente para todas as mulheres, seria uma atitude moderada, se experimentaria a tranquilidade de não contestar múltiplos discursos que definem historicamente o que é uma mulher. Entretanto, há o reconhecimento de que muitas mulheres não são “bem sucedidas” nos seus esforços em busca dessa possível completude, outras nem sequer a desejam e, algumas, tidas por muitos como insolentes, não acreditam nela e contestam, nos termos de Monique Wittig (1992), a égide, o contrato social, os dispositivos que impõem categorias como homem e mulher.

A história acima referida, a lembrança dessas definições e o próprio uso da expressão “uma mulher completa” podem parecer muito antigas e sem sentido para os tempos atuais: tempos onde é possível acessar informações sobre a existência de múltiplos embates feministas, de conquistas de espaços públicos, de consolidação da Lei Maria da Penha, de transformações tecnológicas, de novas formas de parentalidade, de avanços das garantias dos Direitos Humanos. Entretanto, os ensaios visuais e escritos, produzidos pelos estudantes, assim como corriqueiras informações estatísticas sobre múltiplas violências de gênero, contribuem para que o nosso pensamento se sinta forçado a pensar na persistência de formas antigas e na emergência de novas maneiras de se definir mulheres. E, mais do que isso, reconhecer que sobre elas reatualizam-se formas de dominação e controle.

Ano de lançamento

2022

Número de páginas

249

ISBN [e-book]

978-65-5869-684-1

Organização

Catia Paranhos Martins, Jenniffer Simpson dos Santos, Júlia Medeiros Pereira

Formato