Sombras de Reis Barbudos: dicionário de culturemas fraseológicos; religiosos

Márton Tamás Gémes, Vicente de Paula da Silva Martins

APRESENTAÇÃO

“Está bem, mãe. Vou fazer a sua vontade. Vou escrever a história do que aconteceu aqui desde a chegada de tio Baltazar.” (Veiga, 1985, p.1). O início desse romance tão estranho, tão fora de comum na literatura brasileira nos leva, de imediato, a uma situação complexa; não é, somente, que o narrador tematiza aqui o ato de narrar, mas caracteriza-o como um ato de memória, e um ato de comunicação. Lucas é o nome desse narrador, e seu nome não vem por acaso, mas deve ser entendido como uma referência intertextual àquele outro Lucas, o cronista entre os evangelistas. Como este, inicia seu relato se dirigindo-se ao seu ouvinte/leitor, para narrar aquilo que passou, para fixar o passado para o futuro e, quiçá, para dar significado aquilo que passou. E o passado, diga-se de passagem, trata de grandes sonhos, traídos e revertidos em sofrimento pela Companhia – ou pelo povo de Taitara mesmo?

É algo que poder-se-ia chamar amargamente irônico, que esse grandioso romance que luta, na sua integridade, contra o esquecimento – da opressão pelos poderosos, mas também dos pecados da tribo, se podermo-nos permitir uma alusão a um dos outros romances distópicos de Veiga – esteja tão atual hoje, como o era na sua publicação em 1972. Pois comprova, que não o lemos como deveríamos ter feito. Ou que, simplesmente, não o entendemos. Em uma época, em que muitos entre nós aparentemente já esqueceram como era viver na Taitara da Companhia, enquanto outros nem sabem da graça que é nunca ter vivido lá, parece-me que precisamos nos lembrar, de ouvir as palavras do cronista, desse menino Lucas, quando afirma: “Estou aqui para falar do que aconteceu, e não do que deixou de acontecer.” (Veiga, 1985, p.3).

Mas para falarmos daquilo que nós lembramos, para falar do que aconteceu, precisamos da língua, dessa bela língua portuguesa. Não será uma grande surpresa, para aqueles que já leram qualquer obra de Veiga, quando designo alhures (Gémes, 2008, 107 e sgs.)1 o ser humano em Veiga ‘homo quaestionans’, e seu estilo narrativo de um ‘discurso tateante’; é que os personagens veigueanos se encontram, na sua maioria, perplexos ante um mundo que, de repente, se tornou opaco, turvo e ameaçador. Essa ameaça se cristaliza num outro, que é ininteligível para o personagem, pois está além do seu horizonte de expectativa.

Surge daí a necessidade de fazer sentido do mundo, e a única ferramenta, que os protagonistas veigueanos têm a seu dispor para isto, é a língua. É como se “…os personagens como que tateassem, apalpassem os acontecimentos por via do seu discurso em procura de um nexo de significação oculto, até agora não reconhecido.” (Gémes, 2008, p. 111). Para podermos nos colocar no lugar dos protagonistas veigueanos, precisamos absorver, precisamos saborear e ‘tatear’ essa linguagem aparentemente tão simples. Pois é com ela, que um narrador, que não tem certeza sobre o mundo, tenta desvendar esse mundo para nós.

Muitas vezes, no entanto, se esquece o quanto a língua é essencial para a literatura. Muitas vezes, se esquece incluir uma discussão linguística, quando se fala de textos literários, enquanto discussões linguísticas se mostram alheios à literatura. É mérito desse projeto, do qual esse livro é um fruto, de chamar atenção a esta lacuna e de tentar conciliar as duas grandes áreas no curso de letras: a partir da Estilística da Língua Portuguesa – disciplina do oitavo período da Licenciatura em Letras / Língua Portuguesa na UVA – o professor Vicente de Paula da Silva Martins vem ensaiando, com seus estudantes, esse caminho árduo, mas prazeroso e muito produtivo de voltar às palavras, ao sabor e ao gosto de uma vivência que elas evocam, e como constroem e evocam uma cultura, uma experiência do mundo – a pesquisa de culturemas. No livro atual, trazemos as pesquisas no campo das culturemas de Gislaine Costa1 GÉMES, Márton Tamás. “Wenn kleine Welten zerbrechen“: José J. Veigas Ciclo Sombrio. Erkenntnis, Perspektive, Macht und Phantastik. Studien zur Portugiesischsprachigen Welt, vol.1 (Hrsg. Claudius Armbruster). Hamburg: Dr Kovac, 2008.

Cerqueira e Bianca Carvalho Lino sobre Sombras de Reis Barbudos de José J. Veiga, sob a orientação do professor Vicente de Paula da Silva Martins. Devemos dizer que nos sentimos orgulhosos de poder ter contribuído a essas conversas, a esses ensaios.

Pois voltar às palavras – senti-los, saboreá-los e valorizá-los mas, também, questioná-los – é um caminho de volta dos vôos “malucos”, da fuga alienante da realidade, que os cidadãos de Taitara ensaiam no fim do romance; ou como diz o personagem Seu Chamun, da “alucinação coletiva”. E volta acontecerá, ainda segundo esse personagem sábio, “para a festa dos reis barbudos”. Façamos a festa começar.

Márton Tamás GémesVicente de Paula da Silva Martins
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral (CE)

Ano de lançamento

2020

ISBN [e-book]

978-65-86101-98-0

Número de páginas

156

Organização

Márton Tamás Gémes, Vicente de Paula da Silva Martins

Formato