Discursos da resistência: literatura, cultura, política
Organização: Evandra Grigoletto, Fabiele S. de Nardi, Silmara Dela Silva
RESISTIR É PRECISO…
“Discursos de resistência: literatura, cultura, política”. Esse foi o tema do IV SEPLEV – Seminário de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual, realizado no período de 29 de outubro a 1 de novembro de 2018, no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. A temática do evento não foi escolhida por acaso. Encerrada no dia anterior, a eleição de 2018 nos colocou, a todos, diante da necessidade de produzir, pensar, fazer (ser) resistência.
A eleição e seu resultado, no entanto, não estão desvinculados de outros acontecimentos da cena política brasileira mais recente, que tem sido marcada por um processo de enorme agitação social, do qual podemos destacar: i) o golpe de 2016, com todos os seus desdobramentos; ii) as ocupações estudantis que, nesse mesmo ano, fizeram com que a sociedade olhasse novamente para a resistência que faziam, nas escolas e universidades do país, nossos estudantes; iii) o assassinato de Marielle Franco e seu motorista, ocorrido em março de 2018, entre outros eventos. Os textos reunidos nesta coletânea, de diferentes modos, retornam à análise de materialidades discursivas diretamente ligadas a esses eventos e voltam-se à reflexão acerca dos modos de resistir que se produzem nessa relação entre literatura, cultura e política.
Diante da temática do evento, coloca-se o questionamento a respeito da resistência e de seu funcionamento em nossa conjuntura sócio-histórica. O que é resistência? Como se caracterizam os discursos de resistência? Que marcas têm tais discursos, que legados deixam? Pode o sujeito resistir? Podemos, nós, do interior das escolas e universidades, produzindo teoria, produzir também resistência? Questionando o efeito ideológico, Michel Pêcheux já nos advertia para a ausência de um ritual sem falhas e a necessidade de, ousando pensar, se revoltar. Em suas palavras:
Tomar até o final a interpelação ideológica como um ritual, supõe reconhecer que não é um ritual sem falha, falta e rachadura: “uma palavra por outra” é a definição da metáfora, mas é também o pontoonde um ritual ideológico vem se quebrar no lapso […] (PÊCHEUX, [1984], 2014, p. 15-16).
O ponto em que o ritual se estilhaça, levando ao lapso, ao ato falho, à possibilidade do sentido outro, como nos adverte Pêcheux, também não se localiza fora do ritual ideológico. A resistência é, assim, constitutiva dos sujeitos e dos sentidos; o sujeito resiste, o corpo resiste, o sentido se desestabiliza, desliza, torna-se outro. Do lugar da universidade, podemos fazer (ser) resistência, e o fazemos também pela teoria, pela análise, na língua, na literatura, pela palavra que resiste.
Nesta coletânea, a resistência é o fio que articula textos variados, de autores de diversas instituições de ensino e pesquisa do país, que atenderam ao chamado para se voltar aos discursos de resistência, em suas distintas formas, em nossos dias. Assim, em torno da noção de resistência, organizam-se as quatro seções desta obra que, em seu conjunto, reúne 13 artigos.
Com o título Movimentos sociais e resistência, a primeira seção traz três artigos. O texto que abre essa coletânea está assinado por Bethania Mariani que, em Discurso de resistência e testemunhos, vai olhar para as manifestações do discurso político que acabam por deixar, no espaço urbano, seu testemunho, ou seja, marcas de sua presença que tornam possível que práticas de resistência permaneçam para além do tempo de sua aparição. Em seu trabalho, Mariani nos convoca a pensar sobre a atualidade da Análise do Discurso que, “como reflexão teórica e prática analítica”, diz a autora, “pulsa em questionamentos diante dos seus objetos de análise; retorna criticamente sobre si mesma para avançar, e cria mecanismos de resistência, a partir da própria teoria, contra qualquer tipo de submissão, seja aos formalismos, aos psicologismos, aos mais variados tipos de colonialismos, enfim, contra qualquer tipo de servidão”. E é olhando para a resistência que se inscreve no espaço urbano (e produzindo-a) que a autora encerra seu artigo, mostrando que, em nossas universidades/escolas, desenhos, poesias e citações deixadas pelos estudantes nos movimentos de 2016 permanecem como questionamentos “para o que se quer como saber, o que queremos na Universidade”. A escola como espaço de resistência aparece, também, no trabalho de Mariana Vieira Domingues e Andréa Rodrigues, que nos trazem a análise de uma prática pedagógica constituída por um “conjunto de atividades discursivas de leitura, oralidade e escrita em aulas de produção textual”. Em seu trabalho, Práticas de autoria e resistência na escola, as autoras vão justamente se debruçar sobre o modo como as atividades constituíram-se como espaços para a construção da autoria por parte dos alunos, tratando a autoria não como um conteúdo a ser ensinado, conforme esclarecem, mas como uma prática a ser provocada. A partir de uma retomada dos fundamentos teóricos que sustentaram a prática proposta, as autoras passam a descrever e analisar os diferentes momentos da intervenção, as resistências diversas enfrentadas durante o processo, mas também como, pelo enfrentamento e pelo acolhimento desses gestos de resistência, que se pôde ver, na prática, um espaço de autoria se construindo.
Pela língua se faz resistência, por isso, pensar as línguas e a relação complexa de sua (co)existência no espaço escolar é, também, resistir. É para essa direção que aponta o trabalho de Angela Baalbaki, Beatriz Caldas e Lívia Buscácio, Movimentos sociais, sujeitos surdos e resistência. As autoras, ao analisar “o aspecto político que envolve as relações com os surdos no que diz respeito à educação que lhes é proposta e oferecida”, apontam para a existência de um “nós”, no discurso/na luta, que reivindica um modelo de educação bilíngue.
A partir de uma historicização da constituição da surdez e do surdo, bem como das manifestações de sua luta, as autoras vão colocando em questão uma série de falhas que afetam a educação para surdos e o modo como ela é proposta, problemática que se vê atravessada pelo fato de que falar de surdos é falar de uma “minoria marcada por dizeres sobre as línguas de sinais em tensão com a língua nacional majoritária, sobre o que seria um “sujeito surdo” e a relação entre língua, sujeito, educação e políticas públicas”.
Na segunda seção, Língua, literatura e resistência, são três os artigos que se voltam a questões de políticas linguísticas e literatura. Em Política linguística e letramento em LE: o papel das línguas na sociedade contemporânea, Joice Armani Galli nos traz uma discussão sobre o letramento no campo das línguas estrangeiras. A partir de questionamentos muito atuais sobre o lugar das línguas e os rumos das políticas linguísticas no Brasil, a autora revisita a histórias das metodologias de ensino de línguas para afirmar a impossibilidade de que o fazer científico sobre as línguas e seu ensino, e mais especificamente do francês língua estrangeira (DDFLE), seja pensado “como um estudo desprovido de suas repercussões sociais, estabelecidas em contextos de poder e de exclusão”. Ao tomar as línguas como um espaço de resistência importantíssimo em uma sociedade, a autora ratifica o papel social das línguas (e de seu aprendizado), afirmando que“através do letramento em LE os processos de construção do conhecimento das línguas passam a integrar metodologia e política linguística”.
Se há resistência nas línguas, ela está também na literatura, como vai nos mostrar Juliana Santos em Formação e resistência na obra de Lucia Miguel Pereira: uma leitura do romance Em Surdina. Ao olhar para os três níveis de resistência – pessoal, intelectual e artístico – nos quais é possível pensar, quando se evoca a figura de Lucia Miguel Pereira, Santos se debruça sobre o modo de fazer literatura que caracteriza o trabalho da autora, observando que seus romances, tecidos a partir dos conflitos que vivenciam as personagens, vão trabalhar sobre a formação de valores, a construção das individualidades das personagens sem, no entanto, produzir um fechamento dos processos narrados quando se encerra a narrativa. É o processo interior das protagonistas que parece se destacar na obra de Pereira, o que se repete, segundo a autora, também no romance Em surdina. O caráter introspectivo não apaga, no entanto, a forte crítica social pela qual se denunciam, entre outras questões, a situação da mulher na sociedade da época e as formas de resistência que se podiam encontrar.
Partindo de teorias pós-coloniais e dos estudos subalternos e decoloniais, Cassiana Grigoletto e Juliana Terra Morosino, no artigo As representações identitárias em Roa Bastos e Eliane Potiguara, analisam textos literários que representam vozes subalternas que resistem e promovem a construção identitária de suas culturas. Para tanto, tomam como corpus os autores Augusto Roa Bastos e Eliane Potiguara, os quais trazem, respectivamente, em suas obras, uma representação do índio paraguaio e dos indígenas brasileiros. A análise realizada pelas autoras aponta movimentos diferentes nos dois autores: enquanto em Roa Bastos há uma presença tímida da língua do subalterno – o guarani -, em Eliane Potiguara, a ruptura acontece de forma mais forte, pois o indígena é sujeito de sua própria história, o que promove a desconstrução do discurso da dominação etnocêntrica. De todo modo, os subalternos resistem inscrevendo a sua própria voz em um espaço considerado privilegiado, e antes a eles interditado: o da literatura.
Questões de gênero e resistência é o tema da terceira seção, que reúne quatro artigos. No primeiro, com o título Da memória que nunca esquece aos sentidos que desliza, Alexandre Sebastião Ferrari Soares faz uma retomada da noção de resistência em seu funcionamento no quadro teórico-metodológico da Análise de Discurso para pensar nas formas de resistências dos sujeitos LGBTTQI+ às memórias que os constituem. Em seu gesto de análise, Soares nos mostra como se produzem, na atualidade, efeitos de sentido de uma certa democracia sobre sexualidade, que não necessariamente implica em eslocamentos de sentidos no dizer sobre esses sujeitos, mas que faz também ressoar sentidos associados ao modo como e onde a (homo)sexualidade era retratada, desde o século XIX.
De autoria de Dantielli Assumpção Garcia, o segundo artigo, Direito ao corpo, direito ao aborto: entre elas e eles, uma tensão significante, volta-se à análise discursiva de uma postagem em uma página na rede social Facebook acerca de manifestações sobre o direito ao aborto por homens e mulheres. Em seu percurso, a autora retoma o Ciberfeminismo como condições de produção desses discursos, que se marcam no deslizamento entre as expressões “aborto materno” e “aborto paterno”, e que, em seus termos, dão a ver “as resistências que as mulheres precisam ainda enfrentar para dizerem de si e terem direito a seu corpo e ao aborto”.
Também situado na perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso, o terceiro artigo da seção objetiva discutir processos de resistência, de identificação e de subjetivação de mulheres refugiadas congolesas, quando estas enunciam na língua do país de acolhida, no caso, o Brasil. Sob o título Refugiadas congolesas: processos de resistência e subjetivação na língua do país de acolhimento, o artigo de Fernanda Moraes D’Olivo visa a compreender modos de resistência nos dizeres produzidos por essas mulheres materializados na língua do país de acolhimento, a partir de recortes de enunciados ditos em sala de aula de Português como língua estrangeira.
O quarto e último artigo da seção, de Inara Ribeiro Gomes, tem como título A emancipação libertária da mulher no romance de Fábio Luz. Centrando-se na análise literária do romance Ideólogo, de 1903, considerado um marco da ficção como um veículo de divulgação do movimento e das ideias anarquistas, a autora aponta o funcionamento da contradição no discurso sobre a mulher que se marca na obra, ao associar a emancipação libertária da mulher, não a uma ruptura com a sua condição, mas ao 0fortalecimento de “seu status de mãe, esposa, filha e irmã”.
A última seção da presente coletânea, intitulada Mídia, política, resistência, reúne três artigos de pesquisadores que, sob a perspectiva teórica da Análise do Discurso Pecheuxtiana, vão colocar em tensão sentidos que atravessam a cena política brasileira mais recente, questionando-se sobre as evidências dos sentidos hegemônicos, ao olhar para discursos de resistência.
A seção inicia com o artigo de Belmira Magalhães, intitulado Capitalismo e violência política. Nele, a autora, partindo de uma discussão sobre a lógica perversa do capitalismo, em que a democracia está perdendo força, pois direitos conquistados pelos trabalhadores vêm sendo destruídos, analisa o motivo da morte da vereadora Marielle Franco, ocorrido em março de 2018. A análise realizada por Magalhães nos mostra que, ao contrário do que a mídia e o poder político tentaram impor como verdade – Marielle foi assassinada porque era mulher, negra e pobre – ela “foi assassinada porque representava um perigo para os dominantes e principalmente para as ações que o Estado tem tomado contra os movimentos sociais.” Fernanda Lunkes e Silmara Dela Silva, no artigo O Brasil não está em crise (?): sentidos em resistência no discurso publicitário governamental, analisam uma campanha publicitária do Governo Federal, lançada em 2018, comemorativa dos dois anos do Governo Temer. Com o slogan “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, a campanha buscava desconstruir o imaginário da crise nacional, e destacar uma suposta melhora do quadro econômico. A análise realizada pelas autoras aponta retomadas parafrásticas, que constroem, por um lado, sentidos positivados da conjuntura econômica e política e, por outro, sentidos negativos, os quais escancaram as contradições que foram silenciadas e fazem vir à tona, pelo viés da resistência e da memória, sentidos outros. Quais sejam: o Brasil não progrediu 20 anos em 2, mas regrediu 20 anos.
Encerra a coletânea o artigo O funcionamento discursivo do #EleNão das redes às ruas: entre a memória e a resistência, de autoria de Evandra Grigoletto e Fabiana de Souza. Após situar as condições em que tal enunciado surge nas redes durante a campanha eleitoral de 2018, como forma de dizer NÃO à candidatura de Jair Bolsonaro, as autoras analisam o funcionamento do enunciado Nelle Não, que circulou durante a campanha eleitoral entre Lula e Collor em 1989, observando esse “ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória”. Em seguida, tomando como objeto de análise diferentes materialidades em que o #EleNão se fez presente, e que circularam tanto nas redes como nas ruas, Grigoletto e Souza vão mostrando ao leitor como diversas formas de resistências se inscrevem nessas materialidades, ao se entrecruzarem diferentes memórias – da luta feminina ao nazismo – nas retomadas desse enunciado. Uma campanha liderada por mulheres, que se iniciou nas redes, foi para às ruas, voltou às redes, marcando uma tensão constitutiva entre espaço virtual e urbano. O conjunto de textos aqui apresentados reúne, assim, uma parte dos trabalhos expostos durante o IV SEPLEV, trazendo ao público-leitor uma mostra das pesquisas que vêm sendo produzidas a partir de temáticas que são de interesse do Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual (NEPLEV – UFPE), como é o caso do tema central dessa coletânea: discursos de resistência. O livro, portanto, contempla textos de pesquisadores vinculados a esse núcleo de pesquisa, somados a produções de outros pesquisadores, vinculados a outros grupos de pesquisa, com os quais estabelece diálogos, de modo a contribuir com o fortalecimento de laços entre os estudos linguísticos e literários.
Convidamos, então, os leitores a mergulharem nesse conjunto de artigos, que refletem o trabalho que esses pesquisadores têm produzido em torno de uma temática tão importante e produtiva nos dias atuais: a resistência.
EVANDRA GRIGOLETTO
FABIELE STOCKMANS DE NARDI
SILMARA DELA SILVA
ORGANIZADORAS
Ano de lançamento | 2020 |
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ISBN [e-book] | 978-65-86101-03-4 |
Número de páginas | 303 |
Organização | Evandra Grigoletto, Fabiele S. de Nardi, Silmara Dela Silva |
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