Fraseologia, texto e discurso em diferentes abordagens linguísticas
Autoria: Vicente de Paula da Silva Martins
INTRODUÇÃO
O que é fraseologia? O que é texto? O que é discurso? Ao longo de uma década (2009-2019) tentei, de forma bastante entusiástica, em sala de aula na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em Sobral/CE, ou durante minha participação como palestrante convidado em eventos nacionais ou regionais da área de Letras, responder a estas três questões a partir de diferentes abordagens linguísticas, sempre me expondo com muita reserva, inibido, por vezes, sem conseguir apresentar com muita robustez argumentativa o que entendia por fraseologia, texto e discurso, mas também sem nenhuma preocupação ortodoxa, ou melhor, sem me filiar a nenhuma corrente ortodoxa, ou melhor, sem me filiar a nenhuma das linguísticas discursivas mesmo quando seduzido à primeira vista por seus pugilatos teóricos sobre texto/discurso, senão a descoberta (achado linguístico?) de que o fenômeno fraseológico está presente em todas as ciências da linguagem, inclusive a Psicolinguística e a Análise do Discurso, em suas variadas vertentes norte-americanas e europeias.
Em meio à pandemia da Covid-19, reli alguns dos artigos mais antigos, engavetados, e observei que, apesar de terem sido escritos há uma década, traziam muito da minha verve linguística dos anos 2000, minha empolgação acadêmica e passados tantos anos me dei conta que continuo à caça de definições de fraseologia, texto e discurso que se ajustem às questões terminológicas das linguísticas contemporâneas, às demandas das ciências do léxico e ao meu interesse crescente em linguística discursiva. De uma coisa estou certo, propriedades sintático-semânticas das unidades fraseológicas também carecem de novos paradigmas e podem ser consideradas decisivas nas definições de fraseologia, texto e discurso e bem tipificá-los do ponto de vista linguístico.
A falta de consenso, no tocante às noções de fraseologia, de texto e de discurso tanto em termos epistemológicos quanto ontológicos, significa que são muitos e diversos os parâmetros a considerar na definição dos termos ou categorias linguísticas. Não tenho como dar conta dessa complexidade teórica da linguística enquanto ciência da lingua(gem). A fraseologia, por exemplo, de há muito deixou de ser considerada como um fato ou fator marginal mais próximo à literatura, à cultura, ao folclore e ao trivial para ser um aporte central das ciências da linguagem, e sua emergência teórica, há mais de duas décadas, levanta questões importantes que afetam os domínios linguísticos e discursivos relacionados ao léxico, texto, discurso, à sintaxe e morfologia. O livro é esforço de eu aplicar princípios das linguísticas discursivas (Análise do Discurso, Semiótica, Funcionalismo etc.) ao fenômeno fraseológico.
As combinações fraseológicas (expressões fixas) com respeito às combinações livres (sintaxe) mereceram atenção de Saussure, em seu Curso de Linguística Geral, no início do século XX, mas as afirmações do mestre genebrino persistem e são de grande atualidade, nos estudos das operações linguísticas, discursivas e cognitivas da produção, compreensão e do processamento de textos escritos ou orais, e abrem novas janelas para discussões mais demoradas ou exaustivas sobre a fixação, a idiomaticidade, a convencionalidade, a institucionalização, a variação e a frequência no discurso repetido ou formulaico que permitem aos linguistas vislumbrar que o leitor diante de um texto literário ou do discurso parlamentar perceba que está, na verdade, diante de um texto-discurso, produto da enunciação, no qual o discurso (pronunciamento) atualiza-se nas virtualidades da língua, enquanto o texto realiza-se no discurso por meio da manifestação oral ou escrita. O empreendimento teórico de saber mais sofre fraseologia, texto e discurso não é em vão. Tem me permitido entrecruzar olhares com os que lidam, na Linguística Textual, com a noção complexa de texto, definida como realização da atividade discursiva, evento comunicativo empírico concretizado e lugar de interação entre atores sociais (interlocutores) e de construção interacional de sentidos de um enunciado (incluindo, claro, o sentido metafórico). Da mesma forma, através da Análise do Discurso, observei que o discurso interessa aos fraseólogos à medida que, por força da ordem da instanciação, a forma discursiva vem marcada pela ação semiótica e se revela uma prática responsável pela construção sócio-histórica do processo de produção discursiva e da interpretação da sua significação, de caráter polifônico.
Evidentemente, meu passo inicial nessa instigante busca por uma cabal e elegante definição da Fraseologia me levou à releitura de “Introducción a la lexicografía moderna” (1952), do espanhol Julio Casares e, em particular, às acepções da Real Academia Española (https://dle.rae.es) de fraseologia, entre as quais, destacaria o “conjunto de frases feitas, locuções figuradas, metáforas e comparações fixadas, modismos e refrães, existentes em uma língua, no uso individual ou em alguma comunidade linguística” e “parte da linguística que estuda as frases, os refrães, os modismos, os provérbios e outras unidades de sintaxe total ou parcialmente figurada”. No Dicionário de Houaiss, atualizado em 2020, infelizmente, apesar de sua robustez de verbetes, pouco me acrescentou às noções terminológicas de fraseologia e locução. Por fraseologia, Houaiss define a “expressão idiomática”, a unidade fraseológica mais longa e geralmente com verbo, enquanto locução (a nominal), definida como “sintagma ou locução cristalizada, com sentido figurado ou não.” Tenho sérias restrições às definições lexicográficas de Casares, da Real Academia Española e do Houaiss, mas, por hora, são o que há de melhor em se tratando de definibilidade básica ou instrumental de fraseologia e locução.
Da minha parte, o caminho para solução da problemática definitória de fraseologia tem sido a de ampliar meu olhar sobre o fenômeno do lugar das construções cristalizadas ou expressões idiomáticas nas linguísticas contemporâneas. Assim, meu primeiro esforço neste livro, que reúne textos escritos desde 2010, sem a angústia de ter um trabalho sistemático ou com unicidade do ponto de vista teórico, foi, na verdade, o de vislumbrar “A interface entre fraseologia e linguística textual: dêixis e anáfora idiomáticas”. Em seguida, recorrendo à Semiótica Discursiva, trazer à baila o trabalho “O Processamento Fraseológico: a passagem do abstrato ao figurativo”. No campo da Análise do Discurso, na sua vertente francesa, discuti sobre “A fraseologia popular no discurso parlamentar”.
Todos os textos aqui publicados trazem um rico exemplário de expressões idiomáticas no discurso parlamentar. Busquei também me aproximar da Linguística Cognitiva e escrevi o texto “As Formas Simbólicas de Violência na Fraseologia Brasileira” e, em seguida, apresento o texto “O fenômeno da lexicalização na formação das expressões cristalizadas verbais”. Fique curioso em saber mais sobre a presença da fraseologia no âmbito da linguagem digital e escrevi “A Fraseologia no Google Imagens”, com exemplos capturados na Internet de imagens fraseológicas de uso frequente no Brasil.
Com o novo Acordo Ortográfico, vi o impacto das bases ortográficas na lematização de vários lexemas dos dicionários gerais (Houaiss, por exemplo), com a diminuição do número entradas e aumento do número de subentradas, o que me levou a produzir o texto “A Fraseologia de pé de moleque: composto, locução ou sinapsia?”, isolando, para a discussão lexicográfica, a locução “pé de moleque”, anteriormente um composto. E, no final deste bloco, ao me deparar com do atlas linguístico cearense, escrevi o trabalho “A Presença de Unidades Fraseológicas no Atlas Linguístico do Ceará” (2010). A fraseologia no Alece diz muito da idiossincrasia do povo cearense.
O último texto “Hipóteses psicolinguísticas acerca do processamento fraseológico por falantes do português como segunda língua”, escrito em 2010, serviu como meu estudo preliminar rumo à tese de doutorado em linguística pela UFC, defendida em 2013.
Com abordagens tão diversas sobre fraseologia, texto e discurso, é provável que o leitor esteja, como se diz na Espanha, diante de “cajón de sastre” (uma espécie de “gaveta de sapateiro”, desarrumada e misturada de objetos desordenados), mas isso, ou seja, a aparente desorganização é a manifesta interdisciplinaridade que tanto me estimula ao longo das mais de três décadas de magistério e, no fundo, necessária para a entropia que só enriquece o mundo acadêmico, e quanto mais tento esgotar teoricamente sobre as três categorias supracitadas sei que é este o caminho para melhor caracterizar o sistema linguístico.
Vicente de Paula da Silva Martins (UVA)Fortaleza/Sobral – CEAno I da Pandemia Covid-19
Ano de lançamento | 2020 |
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Autoria | Vicente de Paula da Silva Martins |
ISBN [e-book] | 978-65-87645-50-6 |
Número de páginas | 233 |
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