Mulheres Negras Resistem: território, raça/cor e gênero
Organização: Ariadne Rios, Vera Rodrigues
APRESENTAÇÃO
Devo dizer que o Projeto Mulheres Negras Resistem se apresenta no cenário contemporâneo como uma iniciativa antirracista e antissexista crucial para a perspectiva política emancipatória no Brasil. O objetivo maior é de compreender e fortalecer as interações, as relações entre nós mulheres negras nas dinâmicas atuais de fortes acirramento do autoritarismo, racismo e sexismo. Essas questões são tratadas nos capítulos que compõe esse livro, com destaque para a explicitação de como se operacionaliza esse Projeto do ponto de vista de quem dele participou.
Esse Projeto se revela semente, como outras iniciativas na vasta extensão territorial brasileira, após o fenômeno crítico ocorrido com a vereadora Marielle Franco naquele 14 de março de 2018. Posso afirmar que já vem sendo vitorioso em suas edições, a primeira de 2018 intitulada Ideias são à prova de balas, de 2019 – Nossos passos vêm de longe e 2020 – Quem sabe de onde veio, sabe para onde vai.
Sua realização se dá por meio de encontros sistemáticos de mulheres negras com suas potencialidades voltadas a fortalecer às trajetórias e concretizar desejos plurais como ter êxito na elaboração e aprovação de projetos acadêmicos de mestrado, doutorado, projetos interventivos, profi ssionais e de organização política a partir da solidariedade e do lema que nos une – Nossos passos vêm de longe, uma sobe e puxa a outra.
Sem mais tardança se faz necessário a coletivização de nossos interesses, em dá sentido às nossas extensas pautas de luta contra o racismo, a estrutura social opressiva e discriminatória que nos retira oportunidades de “respirar”. Racismo compreendido como fenômeno que desumaniza, que nega a dignidade a pessoas e a grupos sociais com base na cor da pele, no cabelo, em outras características físicas ou da origem regional ou cultural. Este se renova de forma contínua e marca estruturalmente a distribuição desigual de acesso às oportunidades, a recursos, a informações, a atenção e a poder de decisão na sociedade, nas instituições e nas políticas de Estado. O mercado de trabalho e os processos educacionais são áreas importantes onde o racismo se coloca de forma contundente. É fato que mesmo diante de tantas vulnerabilidades e adversidades temos resistido, acessando nosso sistema ancestral, nos ancorando e nos guiado pelas histórias e memórias de luta por liberdade e justiça racial daquelas que vieram antes de nós.
Essa formação tem viés teórico-político, a partir das teorias do feminismo negro integra a luta política com rigor teórico metodológico. Caracteriza-se como importante ferramenta que oportuniza diálogos plurais e democráticos acerca das vulnerabilidades e resistências das mulheres negras. Contrariando o silenciamento, as falsifi cações existentes a respeito de nossa história como grupo étnico superexplorado no âmbito do trabalho, discriminado racialmente e desumanizado de um lado, e de outro o medo de parte da sociedade de reconhecer as ricas possibilidade de resistir e reinventar a vida de negra/os.
As brasileiras negras são 59 milhões, o que representa 27 % da população do país, porém é fatia mais atingida com os piores índices de direitos básicos, como acesso à educação, saúde, emprego, rendimentos, participação política e moradia. Essas mulheres têm requerido reconhecimento étnico e justiça racial num país em que o racismo é estrutural, base fundamental das relações sociais, econômicas e políticas, dele se levanta todo o edifício nacional.
As mulheres negras têm sua identidade racializada, porém nos cabe o cuidado para não cair no subjetivismo, na armadilha do identitarismo.
Para tanto, carecemos compreender nossas dinâmicas sociais, nossas práticas sociais perpassadas por condições objetivas próprias do modo como estamos organizados para produzir e reproduzir nossa existência. Pois a identidade racial é algo tecida numa cultura, tem a ver com as dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais na qual estamos inseridos. A identidade é, portanto, algo objetivo vinculado a materialidade do mundo. São as relações concretas que sustentam as identidades sociais. Somos atravessadas pela identidade em tudo que fazemos ou deixamos de fazer na nossa vida (HAIDER, 2019).
Iniciativas como a do Projeto Mulheres Negras Resistem somam aquelas que querem descolonizar o olhar predominante na sociedade brasileira quanto aos corpos femininos, cuja base de sustentação encontra-se nos discursos: médico-cientifico, jurídico e religioso. É preciso desconstruir imaginários sociais discriminadores das mulheres negras, pois reproduzem práticas de violação de direitos, perpassadas de violências em todas as esferas da vida objetiva e na subjetiva, em particular no campo dos afetos.
Não está associada a nós mulheres negras os discursos de sexo frágil, do corpo delicado, que requer cuidados, numa visão essencialista do eterno feminino. E não estamos aqui reivindicando esse lugar. Mas não nos interessa a brutalização, a desumanização dos nossos corpos, a violação sistemática dos nossos direitos. No campo da saúde as estatísticas mostram essas práticas ao consideraram que as mulheres negras suportam mais dores que as brancas. São práticas punitivas para exercerem relações de poder e humilhação sobre nós como grupo étnico.
A ideia primeira do Projeto Mulheres Negras Resistem nasceu da Profa. Dra. Vera Rodrigues, graças a sua inventividade comprometida politicamente. No entanto, ganhou forma a partir das contribuições das mulheres negras formadoras e cursistas aqui no Ceará, as professoras, as ativistas, as estudantes, as jovens, as artistas e tantas outras unidas pelo objetivo de evidenciar o protagonismo do feminino negro e nordestino ao ofertar uma formação teórica e política de, para e com mulheres negras.
Vale dizer que o Projeto não se ancora simplesmente numa questão de despertar a consciência negra, vai além quando se confi gura como prática organizativa de nossa negritude. Interessa que as mulheres negras se auto-organizem, ao tempo que não percam de vista o horizonte das estruturas macrossocietárias opressoras, sem propalar uma identidade negra fi xa ou cristalizada, mas com capacidade de se articular e apoiar outras mulheres, com o fim de construir e propor um novo pacto civilizatório. Como assim temos feito insistidas vezes nesse país, a exemplo em 2015 da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver. Acredito que por tentar em todas as edições forjar alianças com outros coletivos e grupos capazes de criar laços, e com algumas instituições a adesão tem sido positiva, a participação considerável e com pouca evasão das cursistas. Muito embora esse projeto tenha demonstrado todo seu potencial de crescimento para ampliar seu público-alvo e incrementar suas ações, não só em Fortaleza e região metropolitana, pode avançar para outras regiões, tem se deparado com limites orçamentários e institucionais para sua ampliação.
A riqueza desse e-book Mulheres Negras Resistem: território, raça/cor e gênero organizado por Vera Rodrigues, Ariadne Rios e Mona Lisa da Silva está em contar uma experiência que aposta no poder que tem as mulheres negras atuando em coletividade, pois historicamente as mulheres negras são silenciadas, invisibilizada e negligenciadas pelas políticas públicas e pelas produções acadêmicas. Embora sejam protagonistas de relevantes articulações, nacionais e internacionais, que alcançam conquistas signifi cativas para a população negra – somos invisibilizada e desautorizadas a falar.
Muitas das mulheres negras na trama social se apropriam de símbolos essenciais na constituição da sociabilidade para resistir e melhor viver numa sociedade desigual. Considero salutar para nos fortalecer nos combates cotidianos o feminino de Iansã experienciado na cultura e religião de matriz africana no Brasil. Quais características defi ne esse orixá? Iansã ou Oiá é guerreira, cujo feminino se confi gura a partir de contradições, essas verdadeiramente humanas, entre aquela que tem uma sensibilidade e tem uma força, entre a que representa o búfalo com a força e ao mesmo tempo a sensibilidade da borboleta. É versátil e com a capacidade de se metamorfosear assumindo diferentes formas e papéis, numa multiplicidade de funções para sobreviver. É desejo nosso, por meio do Projeto Mulheres Negras Resistem, encontrar a força desse feminino e exprimir modos plurais de viver, fortalecendo em nós a disposição para resistir e recriar as práticas cotidianas, acreditando que outro mundo com Bem Viver é possível construir.
Quero expressar minha enorme gratidão de ser parte desse Projeto guiado por uma prática política revolucionária.
Fortaleza, 01 de Novembro de 2020Zelma MadeiraCoordenadora da CEPPIR – Coordenadoria Especial de Politicas para promoção da Igualdade Racial do Ceará(2015), Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará e Coordenadora do NUAFRO- Laboratório de Afro brasilidade, gênero e família da UECE
Ano de lançamento | 2020 |
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ISBN [e-book] | 978-65-5869-041-2 |
Número de páginas | 77 |
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Organização | Ariadne Rios, Vera Rodrigues |