Trajetórias de lutas: memórias de mulheres pobres, ex-faveladas e a educação sociocomunitária como prioridade
Organização: Tânia Mara da Silva
APRESENTAÇÃO
“Se queres ser universal, canta tua aldeia”
(Tolstói)
A escrita de um livro muitas vezes implica na tentativa de mediação entre os olhos do autor, do que foi visto e experimentado na realidade e o que chega até seus leitores, não como tentativa de fidelidade absoluta ao concreto pois tal pretensão o converteria em ficção; mas antes como sensibilidade que recolheu outros sencientes e foi capaz de, tal qual um prisma, exibir-lhes a riqueza multifacetada.
Esse é o caso da obra de Tânia Mara da Silva, que soube antes de tudo captar a variedade de perspectivas na dimensão do comum, daquilo que foi dividido pela multiplicidade dos indivíduos constrangidos por circunstâncias concretas com as quais se confrontaram; a tantas camadas de (des)humanidade sobrepostas, rugosidades como eram chamadas por Milton Santos, veio somar-se o amoroso olhar da educadora e a solidariedade empática que perpassa todo o trabalho.
A inexistência de qualidade de vida aceitável nas urbes brasileiras para aqueles que são parte das camadas sociais desfavorecidas econômico e socialmente apresenta-se aqui como o pano de fundo, do qual surge o estudo específico realizado: a favelização em Santa Bárbara D’Oeste enquanto fenômeno de segregação sócio-espacial pautado por aspectos de resistência e portador de memórias que se constituem em identidade coletiva nas vozes das lideranças femininas que a vivenciaram.
Estes foram aspectos abordados pela autora com cuidado acadêmico e a necessária delicadeza, como a solidão e a violência na Favela Zumbi dos Palmares em variadas formas, trazendo uma contribuição rara na compreensão da dolorosa experiência humana e do drama social que cotidianamente se reproduz nos espaços urbanos precarizados, com as características particulares retratadas tanto em dados objetivos quanto nas narrativas das entrevistadas.
Dentre os lugares de fala que estão presentes neste livro surge o da própria autora, cuja trajetória nos desvenda como se chega a compreender dores alheias com a simpatia irmã que as acolhe e respeita: não apenas a autora e as narradoras entrevistadas são protagonistas do estudo, somam-se a elas vozes abafadas e indiretas de crianças, velhos, adultos em abandono pelo Estado e muitas vezes mesmo por seus iguais – um quadro que seria desolador se pintado apenas com cores tristes, mas que recobra sua altivez e exibe dignidade alcançada com luta na análise que nos é oferecida.
Na qualidade de educadora, Tânia Mara da Silva está em excelente companhia; seus referenciais teóricos alicerçados em Paulo Freire, Benjamin e outros mestres de envergadura internacional são mobilizados nas análises por vezes pungentes que comparecem no desenvolvimento do livro, escrutinando os limites da realidade vivida e trazendo à luz aspectos relativos à condição feminina e negra destas mulheres em pleno século XXI, através dos quais resistem e se reinventam – a educação pelo avesso, pela amarga luta pela sobrevivência que nunca será suficientemente denunciada.
Outra faceta que é abordada e merece aplauso é a interlocução com a problemática dos direitos humanos básicos que emerge em diversas oportunidades nessa obra, a falta de acesso à saúde e questões sanitárias infraestruturais em contraposição ao exercício de poder(es) por grupos diversos constituindo territorialidades em confronto; a marginalidade, por um lado e o poder estatal, por outro são lidos como pólos em relação aos quais as lideranças femininas negras tiveram que encontrar seu espaço de negociação e resistência na busca de suas demandas.
Fruto de pesquisa realizada no Mestrado em Educação Sociocomunitária do Unisal na cidade de Americana pela autora, o presente livro apresenta para a comunidade educativa e interessados na temática, as vozes das mulheres da Favela Zumbi dos Palmares e suas experiências vividas, onde a favela é apresentada como espaço de luta e resistência.
A autora nos convida a refletir sobre a Educação Sociocomunitária e suas possiblidades de intervenção na trajetória de vida destas mulheres, potencializando ações transformadoras desenvolvidas por elas em seu papel de sujeito de suas próprias histórias. As mulheres que são apresentadas neste livro, assumiram o protagonismo na busca da transformação da realidade vivida por elas, mas também do lugar onde viviam e vivem. Elas foram e são agentes de transformação contínua do espaço social, político e econômico em que suas vidas e suas trajetórias foram e são construídas.
Neste sentido, o lugar de fala destas mulheres constitui material rico para se pensar nas ações necessárias do poder público em torno das necessidades delas e de tantas outras pelo Brasil que vivem situações parecidas e que precisam ser modificadas. A fala destas mulheres impõe compromisso com a transformação e a equidade social, nos convida ao engajamento político em torno de suas vivências e experiências.
Tânia Mara nos lembra no texto da importância do posicionamento, da indignação e da recusa da realidade vivida por estas mulheres da Favela Zumbi dos Palmares. A autora rememora que sua pesquisa nasceu da compaixão e do desejo de narrar a vida destas mulheres; mas sobretudo de sua militância no movimento negro e da sua história de vida como uma mulher negra.
A história de vida da autora, sua auto-biografia, foi fator determinante para que este livro fosse escrito, pois evidencia a postura e o compromisso de quem não ficou apenas na denúncia de uma situação de exclusão e desigualdade. Evidencia a postura de alguém que viu, julgou e agiu diante da realidade deste grupo de mulheres e que junto com elas, buscou alternativas. Tânia e as mulheres apresentadas neste livro assumiram o protagonismo com a própria história mostrando a favela como espaço de luta e resistência, como espaço de auto afirmação diante de uma realidade opressora.
Terminamos esta apresentação reafirmando a importância do lugar de fala sobre as Vozes das mulheres aqui apresentadas e o compromisso delas com a vida e com a sociedade. As vidas aqui apresentadas são faróis para iluminar o caminho que temos ainda por percorrer para concretizar a democracia em nosso país. São Vozes potentes que denunciam, mas que também anunciam possibilidades para o porvir, para a construção de outro futuro possível.
Este livro, pois, se insere na escrita de mulheres negras que assumiram sem medo seu lugar no espaço acadêmico, partindo do cotidiano vivido, das rememorações advindas das experiencias de vida; por isso se apresenta como escrevivência:
“a nossa escrevivência não pode ser lida como
História de ninar os da Casa-Grande, e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos”
Conceição Evaristo
Profa. Dra. Rita de Cássia Lana
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Prof. Dr. Francisco Evangelista
Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL
Ano de lançamento | 2020 |
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ISBN | 978-65-5869-023-8 |
Número de páginas | 165 |
Organização | Tânia Mara da Silva |
Formato |