Direito e literatura

Isael José Santana, Michela Mitiko Kato Meneses de Souza

PREFÁCIO

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)

O lirismo é um dos aspectos mais reverenciados da poética de Manuel Bandeira; no entanto, do poema em epígrafe, talvez dos mais conhecidos do autor de Belo belo, também pode ser destacado o quanto o ser humano é frágil e a evidência uma questão social até hoje não superada pela sociedade brasileira: a miséria, em variados aspectos. Provavelmente, mais que mencionar a desumanidade de uma cena, igual à descrita por Bandeira, seja mais importante refletirmos no quanto a Literatura pode humanizar, ou conferir mais humanidade aos seres humanos. Antonio Candido, em A literatura e a formação do homem, aponta para o fato de que a literatura “não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”[1]. Assim é que O bicho nos provoca e questiona: como a sociedade é capaz de viver em uma época de máxima tecnologia e, mesmo assim, ser incapaz de resolver questões básicas do ser humano, como o direito à alimentação, à moradia e a tantos outros bens essenciais à dignidade humana?

Ao receber os capítulos que compõem o livro “Direito e Literatura”, encaminhados pelo estimado Prof. Dr. Isael José Santana com a solicitação de um prefácio, inevitavelmente, fui levado a refletir sobre outro ensaio de Antonio Candido: O direito à Literatura[2]. De tal sorte, também logo me vi conduzido à reflexão sobre dois aspectos que, embora distintos, estão bastante relacionados, quais sejam: Literatura e Direito; e o Direito à Literatura.

Ao refletir sobre a existência de bens compressíveis e incompressíveis, Candido elabora seu pensamento acerca da Literatura: trata-se de um bem incompressível, posto que a negação de tal direito atinge o ser humano de diversas maneiras. Para o crítico, a Literatura é tão importante quanto outros bens incompressíveis, já que, privado de tal direito, o ser humano tem negado, por conseguinte, o direito de sonhar, entre outros… aliás, a privação de tal bem pode provocar danos irreparáveis, uma espécie de amputação, à própria formação humana do indivíduo.

Dessa forma é essencial que tenhamos, nas universidades, espaços para que a Literatura e a leitura literária sejam discutidas e mesmo praticadas; de tal forma que a existência de um grupo de estudos que congregue alunos, professores, pesquisadores voltados ao fenômeno literário é, portanto, primordial para que as instituições de ensino superior tenham a possibilidade, em seus cursos de graduação e pósgraduação, de contemplarem aspecto tão relevante à formação humana e humanizadora.

Por outro lado, pensar na relação entre Direito e Literatura agrega ainda mais às discussões até o momento encaminhadas: dentre as diversas áreas, o Direito é uma das mais relevantes para se pensar em como a Literatura pode contribuir para a formação humanística das pessoas. A área dos Direitos Humanos erige-se como um dos principais expoentes em tempos como os que ultimamente temos vivido: de intolerância, de desrespeito aos direitos mais básicos dos seres humanos, da castração de diversas ordens, de instabilidade política e mesmo jurídica que prejudicam a ampliação de direitos muito recentemente conquistados pela sociedade brasileira.

Assim é que o livro organizado se torna importante, considerando o cenário brasileiro, mas também e, especialmente, por ser fruto, resultado, de trabalhos que aproximam o Direito e a Literatura, configurando-se como obra relevante para o pensamento acerca da humanidade e do que a universidade pode empreender no sentido de minimizar as mazelas de uma sociedade.

Ao empreender a leitura dos textos encaminhados, busquei um agrupamento que permitisse certa aproximação entre os textos, ou um diálogo que propiciasse a aproximação das questões tratadas pelos autores e, dessa forma, vislumbrei quatro blocos ou eixos: Direito e Literatura Brasileira; Literatura Estrangeira; Questões acerca de negritude e judaísmo; e Violência.

Integram o primeiro eixo, Direito e Literatura Brasileira, capítulos que tratam dos seguintes romances: Capitães da areia, de Jorge Amado; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; e O cortiço, de Aluísio de Azevedo. Em “Capitães da areia: os óbices da homofobia”, Angela Aparecida da Cruz Duran e Gabriele Weber Hommerding apresentam “noções sobre conceitos ligados a homofobia, tais como o preconceito e a violência, observar componentes do grupo LGBT, buscar na obra ‘Capitães da areia’ indícios pontuais destas personalidades e por fim, buscar a influencia que o Direito pode exercer nesse meio”. Em “Cidadão quem? Uma análise da obra vidas secas sob aspectos da cidadania e da criminologia.”, Alexandre de Castro e Brena Monteiro Barreto buscaram “nessa interdisciplinaridade entre Direito e, mais especificamente, em Vidas Secas (1933), a complexa e incompleta representação existente hoje no seio da sociedade brasileira entre cidadania e Estado”. Já o capítulo intitulado “O cortiço ainda existe – a atualidade da obra O cortiço para pensar as relações sociais no Brasil no início do século XXI”, Guilherme Costa Garcia Tommaselli e Lucas Felipe Pereira apontam para o fato de que a “obra de Aluísio de Azevedo é atual para explicar o Brasil contemporâneo, pelos elementos aqui apontados. As relações que se desenvolvem no livro, e, mais especificamente, a relação entre Bertoleza e João Romão, demonstram a dinâmica de funcionamento que operava na constituição de sociedade brasileira pós-escravatura, mas que se conserva até hoje, guardadas pequenas mudanças históricas, mas que não alterou de forma significativa esse modo de operação das relações sociais”.

A Literatura estrangeira se apresenta, na obra, a partir da leitura das obras O Primo Basílio, de Eça de Queirós; Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski; e Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez. No capítulo “Chantagem e maus tratos em O primo Basílio de eça de queirós”, Leandro Passos e Eros Frederico da Silva objetivam à reflexão do “Direito “na” Literatura, ramo da disciplina Direito “e” Literatura, que objetiva o estudo das formas sob os quais o Direito é visto na Literatura. Para tanto, escolheram-se, como temas de reflexões, a chantagem e os maus tratos na obra O Primo Basílio do escritor português Eça de Queirós”. Por sua vez, Isael Santana e Gabriela Ribeiro buscam “a partir do romance Crime e Castigo de Dostoiévski, as variadas perspectivas relacionadas a área do Direito percebidas na obra. A culpa, a atuação do ser humano, o direito penal, a criminalidade, a criminologia, dentre outros, sendo estes o cerne do debate. Questionam-se como a culpa pode ser a mais severa punição, como a população reage diferentemente para cada delito e por quem ele é cometido e o direito penal sob a ótica penalista, a fim de elucidar as razões do crime”. Já no capítulo intitulado “Uma possibilidade da perspectiva democrática- jurídica na obra Cem anos de solidão”, Luciana Ferreira de Queirós e Michela Mitiko Kato Meneses de Souza apontam para o fato de que a obra de Marquez também evidencia a produção latinoamericana e, para as autoras, a “supressão de direitos teve papel fundamental na impossibilidade de crescimento dos países latino-americanos, uma vez que no plano externo foram explorados pelos colonizadores e no plano interno os diversos conflitos ditatoriais prolongou o estado de miséria dos países, muitos, em sua maioria, enfrentam até os dias atuais problemas básicos como a falta de saneamento básico, criminalidade latente, analfabetismo, pobreza crônica, falta de moradia e demais  problemas relacionados à falta de políticas públicas”.

Compõem o bloco que nomeei Questões acerca de negritude e judaísmo, os trabalhos de Gilmar Ribeiro Pereira e Isadora Silva Queiros, intitulado “O movimento abolicionista de Nabuco – repensando a “inserção social e etnico-racial” do povo negro no Brasil”, o capítulo de Leandro Passos e Luana Passos: “O mundo no blackpowerde tayó de Kiusam de Oliveira e o cumprimento da lei 10.639 de 2003”, além do capítulo de Etiene Maria Bosco Breviglieri e Juão Ozilo Silva Ferreira: “A história de um centauro que veio parar no Brasil: a literatura fantástica frente aos temas de imigração e refúgio.”. No primeiro, os autores consideram que “Nabuco (1977) tinha razão o racismo não desapareceu com abolição da escravidão, pelo contrário se acirrou mais ainda, formando uma sociedade para brancos e afirmando constantemente de que vivemos em uma “democracia racial” ou de “paraíso racial”, o que é um ledo engano, pois alimentou um embrião racista que se cristalizou, naturalizou-se e sedimentou-se”. No segundo capítulo deste eixo temático, os autores consideram que “as ações da narrativa fictícia da obra O mundo no blackpower de Tayó de Kiusam de Oliveira possam ser relacionadas aos “fatos jurídicos”, do Direito propriamente dito, tendo em vista que as duas áreas do conhecimento são duas estruturas que compõem o cenário da presença humana no mundo, como explica Trogo (2013), no artigo “Direito e Literatura – subsídios etmológicos para uma aproximação entre Direito e Literatura”. Segundo o autor, é na Literatura que reside o elemento proteico do humano, o sensível, o estético e, desta forma, a partir desta sensibilidade, nascem os problemas que a ética e o Direito vão tentar amenizar”. Já no terceiro capítulo desse bloco, os autores asseveram que “não há como se fazer análise de “O Centauro no Jardim” sem levar em conta diferentes formas de discurso que refletem temas comuns como o preconceito, o refúgio e a vida dos imigrantes. Dentre as formas discursivas que aproximam literatura, história e direito está a literatura fantástica; vista como forma literária que aproxima ambientes diferentes na realidade em um só mundo; o literário”.

O quarto eixo de leituras que sugiro contempla questões relacionadas à Violência. Dois capítulos estão articulados a partir desse eixo: em “E se abríssemos os olhos agora? Sobre a representação da violência no romance de Edney Silvestre”, Isael José Santana e Marília Corrêa Parecis de Oliveira objetivam “analisar e interpretar a obra Se eu fechar os olhos agora (2009), de Edney Silvestre, relacionando-a com o contexto de violência nela representado, isto é, o Brasil em vias da fragilidade de sua democratização na década de 1960”; no capítulo “À margem da lei e da sociedade: apontamentos sobre a literatura marginal”, Luiza Bedê se propõe a “apontar marcas da presença do cotidiano dos sujeitos nos discursos sobre a literatura marginal, movimento literário brasileiro que surgiu nas periferias, principalmente, urbanas. Os autores dessa literatura são provenientes desses espaços e relatam em suas narrativas as experiências de viver à “margem” da sociedade; as temáticas da literatura marginal incluem os mais diversos problemas sociais como a violência, a ausência do Estado, a truculência da polícia, as relações que envolvem o trabalho – problemáticas sempre relacionadas com o espaço social da periferia”.

A marca registrada de todos os textos que compõem esta obra está em suas preocupações sociais. Para além de tais preocupações, a organização da obra revela um trabalho apurado que alia Direito e Literatura, que contempla diversas obras literárias e que fornecem aos leitores elementos riquíssimos para a análise dessas obras a partir de perspectivas contempladas pela área do Direito. Espero que todos os leitores tenham a oportunidade de reconhecer, nos trabalhos, o quanto a aproximação entre Literatura e Direito é profícua e prazerosa; também espero que os textos sejam propulsores da leitura dos próprios textos literários…. Aos leitores, boa leitura! Aos autores e à organização, meus parabéns!!

José Antonio de Souza
Inverno de 2018

Notas de rodapé

[1] CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São Paulo, v. 24, n. 9, p. 803-809, 1972. 2 CANDIDO, Antonio. “O direito à Literatura”. In: Vários Escritos.5 ed. Ouro sobre Azul: Rio de Janeiro, 2011.

Ano de lançamento

2018

ISBN [e-book]

978-85-7993-560-2

Número de páginas

272

Formato

Organização

Isael José Santana, Michela Mitiko Kato Meneses de Souza