Bárbaras cenas: ecos do holocausto brasileiro após a reforma psiquiátrica nos discursos sobre “A cidade dos loucos e das rosas”
Autoria: Valéria Bergamini
PREFÁCIO
A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência…Machado de Assis
Na Itaguaí de Simão Bacamarte, a proposta da construção de uma casa, destinada a abrigar os loucos da cidade e da região, foi recebida com burburinho. No conto machadiano, alguns loucos passavam os dias confinados em suas próprias casas, enquanto outros caminhavam livremente pelas ruas, até que a proposta feita ao poder público pelo médico Simão Bacamarte viria a alterar tal cenário: a construção de um asilo, destinado a abrigar os supostos doentes mentais, possibilitaria a cura de suas enfermidades e contribuiria para o avanço científico. Construída aquela que viria a ser chamada Casa Verde, logo ela estaria lotada… e os cofres do médico, cheios de dinheiro.
A história da loucura, no Brasil e no mundo, não percorre caminhos muito distantes daquele narrado por Machado de Assis, na fictícia Itaguaí. Historicamente, constituem-se sentidos para a loucura e constroem-se lugares de tratamento/exclusão para os loucos. E havendo lugar para abrigar essas pessoas, e dinheiro para mantê-las apartadas, surpreende o número de loucos que aparecem…
Longe de se constituir como um fato em si, a loucura é construída discursivamente em conjunturas sócio-históricas específicas, como se pode inferir por esse exemplo literário aqui mobilizado e, também, por uma vasta literatura acerca da loucura e de sua história, que tem como grande referência o trabalho de Michel Foucault, História da loucura. É nessa perspectiva, com foco no discurso sobre a loucura e o sujeito dito louco, que se inscreve essa bela e densa pesquisa desenvolvida por Valéria Bergamini.
Na condição de orientadora, tive o prazer de acompanhar o desenvolvimento dessa pesquisa desde os seus primeiros passos: do desejo que move a pesquisadora que nasceu e reside em uma cidade dita “dos loucos”; de sua descoberta de uma perspectiva teóricometodológica que se volta ao estudo do discurso, questionando os efeitos de evidência, de naturalização dos sentidos; do seu encontro com o discurso sobre a loucura e a Reforma Psiquiátrica, que se materializa em dizeres na imprensa local. Em quatro anos de trabalho árduo, a pesquisa de Valéria foi ganhando forma e dando a ver o funcionamento de discursos sobre a loucura no município mineiro de Barbacena, nomeado a cidade dos loucos e das rosas. Em quatro anos, Valéria foi se tornando uma pesquisadora.
Em sua tese, que agora dá forma a este livro, a autora empreende um percurso teórico pela análise de discurso que se desenvolve na França, na década de 1960, em torno dos trabalhos de Michel Pêcheux, e que segue seu curso no Brasil, constituindo-se como uma disciplina de entremeio, que se ocupa dos processos de produção dos sentidos.
Ao voltar-se às condições de produção do discurso sobre a loucura, percorre os sentidos que instituem a loucura como enfermidade em nossa conjuntura sócio-histórica e discorre acerca das peculiaridades da criação dos hospícios no Brasil, de um modo geral, e do Hospital Colônia de Barbacena, em particular. Ao mesmo tempo em que mobiliza referências bibliográficas numerosas e sólidas, a pesquisadora também vai a campo em busca da situação dos hospitais psiquiátricos e das casas de saúde que hoje seguem em funcionamento, em Barbacena.
Para o desenvolvimento das análises, com sensibilidade, a autora percorre os arquivos do jornal Correio da Serra, periódico com circulação no município mineiro, recortando os dizeres sobre a loucura, o sujeito dito louco, os hospitais existentes na cidade, a Reforma Psiquiátrica e as ações implementadas por decorrência desse processo, tais como o Museu e o Festiva da Loucura; em meio a tantos dizeres, já-ditos e não-ditos sobre a loucura e o louco, marcam-se também sentidos sobre o espaço urbano, sobre a cidade – dos loucos e das rosas –, sobre a política e o(s) político(s) que deixam rastro no modo como (não) se diz na imprensa.
O trabalho de Valéria vem somar-se, assim, a tantas outras pesquisas em análise de discurso desenvolvidas no Brasil, desde a década de 1980, que mostram a não-transparência da linguagem, a divisão dos sentidos, o funcionamento da ideologia no discurso, o modo como a língua se inscreve na história para significar.
Além da contribuição teórico-analítica que representa para o campo dos estudos da linguagem e do discurso, a pesquisa desenvolvida pela autora possui inegável relevância social.
Desenvolvida no âmbito de um programa de Doutorado Interinstitucional (DINTER), implementado com apoio da CAPES, com o objetivo de contribuir para o aprimoramento da formação como docentes e pesquisadores de servidores vinculados ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IF SUDESTE MG), a pesquisa em tela de fato permite o enlace dos estudos da linguagem a questões importantes para o município de Barbacena e sua população, ao voltar-se a discursos que constituem a própria cidade e os sujeitos que a habitam.
Na Itaguaí de Simão Bacamarte, diante da proliferação de internações, ouve-se a indagação: “— Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”. Ao tratar da posição de trabalho evocada pela análise de discurso, Pêcheux ([1983], 2008, p. 57) nos adverte acerca da necessidade de se questionar as evidências das “interpretações sem margens”, e do “intérprete [que] se coloca como um ponto absoluto, sem outro nem real”. Questionar sentidos estabilizados, conforme o autor, é “uma questão de ética e política: uma questão de responsabilidade” (idem, ibidem); responsabilidade essa assumida por Valéria Bergamini, em seu percurso como pesquisadora, como analista de discurso.
Silmara Dela Silva
Professora Associada do Instituto de Letras da UFF
Janeiro de 2020
Ano de lançamento | 2020 |
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Autoria | Valéria Bergamini |
ISBN [e-book] | 978-65-990019-1-8 |
Número de páginas | 305 |
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