“Como um pássaro a esvoaçar”: a literatura de autoria feminina como prática teórica e na sala de aula

Organização: Jacob dos Santos Biziak, Kátia Cilene S. S. Conceição

PREFÁCIO

“Pássaros a esvoaçar”: a escrita feminina como experiência de “por vir”

O nó na minha garganta vai diminuindo. Palavras juntam-se, grudam-se, atropelam-se umas por cima das outras. Não importa quais sejam. Empurram-se e trepam uma nos ombros das outras. As isoladas, as solitárias acasalam-se, cambaleiam, multiplicam-se. Não importa o que digo. Como um pássaro a esvoaçar, uma frase cruza o espaço vazio entre nós. Pousa nos lábios dele.[1]

Optamos por começar nosso gesto de leitura dialogando com as palavras do enunciador do romance As ondas (que também estão presentes no título deste volume), comumente considerado pela crítica como o mais experimental de Virgínia Woolf. Dessa forma, trazer esse diálogo reflete em diversos outros com que, acreditamos, vamos (des)tecendo nossa atualização discursiva por recurso a não só uma memória: a de uma das mais citadas escritoras quando a temática é a escrita feminina no Ocidente; a de uma escrita que prima pelos experimentalismos com a língua; a tão propalada relação entre masculino e feminino, que “Pousa nos lábios dele.”

Assim, estamos tentando pensar sobre as (im)possibilidades de uma escrita feminina, não no sentido de uma mulher poder escrever, mas, principalmente, nas implicações políticas e estéticas de se considerar tal conceituação como relevante aos espaços discursivos de circulação de saber.

Se Bakhtin[2] está certo, e se toda palavra é bivocal, ao trazermos “pássaros a esvoaçar” para esta obra, recuperamos um pouco do que já se disse sobre a literatura de autoria feminina e abrimos espaço para o por vir. Este, por sua vez, precisa manter seu caráter de impossibilidade, justamente para que os sentidos não se estanquem, mas voem, esvoacem. Não podemos nos esquecer de que enunciadores, pássaros presos nas gaiolas de linguagem (já que ninguém simplesmente diz o que quer nem como deseja, e todo ímpeto de controle é impulso neurótico rumo ao sequestro semiológico) não deixam de querer voar, de forma que as mesmas grades que prendem são as que abrem frestas para se espiar o lado “de fora”. Este, na verdade, é outra ilusão, já que o mundo que se acredita observar passa a compor o imaginário de que, de dentro da gaiola, se observa. Há sempre algo que não se pode conter, saturado, situado pelo olhar que não ocorre de qualquer lugar: eis a linguagem, selvagem, entre prisão e desejo de liberdade: “Palavras juntam-se, grudam-se, atropelam-se umas por cima das outras. Não importa quais sejam”.

Por meio desta analogia, cremos nos aproximar de nosso objeto de pensamento: a literatura de autoria feminina. Falar sobre ela implica recuperar os já-ditos a respeito, uma vez que, sem eles, o dizer é impronunciável. Dessa forma, vale lembrar a divisão tradicionalmente apresentada, no contexto ocidental, a respeito da questão: a vertente estadunidense, que apoia um entendimento no qual é necessária uma mulher (e aqui pensamos até onde pode ser alargado ou comprimido o entendimento sobre as definições possíveis); a vertente francesa, na qual a avaliação consiste muito mais na prática da escrita e nas implicações desta com a construção de um corpo feminino que se dá graças àquela. Com este prefácio, pretendemos dialogar com essas duas vertentes com vistas a acrescentar algo mais à discussão.

Elaine Showalter[3] levanta a importância de a presença feminina também se fazer presente na teoria, de forma que esta seja construída fora de certo território masculino. Caso contrário, teremos a obra elaborada por escritoras sendo sempre analisada a partir de um viés masculinista de percepção das realidades; esta, por sua vez, comparece por meio de valores que não são a priori, mas situados em condições de produção históricas, sociais e ideológicas. Logo, a materialidade da linguagem – conforme entendida por Pêcheux[4] – comparece à apreciação da literatura, em qualquer nível na qual esta seja tornada possível. Com isso, a crítica feminista – ao lado da escrita feminina em literatura – deve se concretizar como ato de resistência, comunicando-se com as redes de poder que dão espessura à linguagem, nunca transparente. A autoridade da experiência, portanto, é fundamental, dado que não exclui a subjetividade e abre alas à evolução da teoria como dispositivo de leitura e enunciação no qual o político é reconhecido nas representações empreendidas pela língua em ação. Segundo a autora, derivariam disso dois trabalhos comuns e possíveis: um mais ideológico, no qual a mulher enquanto signo seria colocada como forma de interpretação sobre as imagens femininas na literatura; outro seria resultado de uma preocupação mais específica com a mulher enquanto escritora, a chamada ginocrítica.

Segundo Showalter[5], toda crítica feminista, mais do que possível, é necessária, já que representa o poder revisionista sobre o já-dito no cânone crítico. Ainda assim, tal prática não pode se esquecer de seu funcionamento básico: só pode ocorrer a partir de modelos pré-existentes, devendo, logo, se tornar um exercício metalinguístico e metacrítico permanente para não se converter em “homenagem” ao masculino. Com isso, a ginocrítica, discursivamente, pode atuar como elemento de inverter hierarquias, colocando textualidades em novas redes citacionais[6] de leitura, citação e circulação de enunciados[7]. O trabalho que se limita ao ataque à crítica masculina corre o risco de corroborar a dependência em relação a ela, que continuaria sendo colocada como padrão universal de saber. Pensando analogamente com Beauvoir[8], urge que crítica e autoria femininas sejam pensadas para além do masculino, comparecendo não mais como possibilidades “segundas” em relação a este: isso não significa “começar do zero”, inclusive porque, do ponto de vista discursivo, é uma impossibilidade, uma vez que a sensação de ser origem do dizer é um dos esquecimentos que dão origem à enunciação[9]. Ao contrário, pensar o “segundo sexo”, talvez, seja uma prática estético-política porque faz com que formas de vida, de relação com o outro, sejam pensadas juntamente com as maneiras de se fazer os reais representáveis, perceptíveis e reconhecíveis. Tal funcionamento não significa anular a alteridade – ainda que na disseminação do que venham a ser masculinidades – mas dialogar ininterruptamente com ela, colocando a linguagem em hiância.

Então, voltando a Showalter[10], coloca-se a necessidade de se repensar como encontrar respostas às questões da experiência, em que a crítica feminista deve encontrar seu assunto, seu sistema, sua teoria e sua voz. Parece-nos, então, que um dos pontos fundamentais de se acreditar na importância do conceito de escrita feminina – literária ou crítica – esteja na oportunidade de se refletir sobre como as realidades nos são dadas a ver e, a partir disso, buscamos os sentidos, algo possível somente na mediação com a alteridade. A ginocrítica consolidar-se-ia por ser uma redefinição do problema teórico da crítica feminista: a questão da diferença. O feminino, portanto, deve ser resgatado do estereótipo, sendo lido ora como opressão (crítica tipicamente inglesa), ora como repressão (francesa), ora como expressão (estadunidense). A diferença, sendo assim, vai sendo pensada por meio de definições que não devem ser excluídas umas em relação às outras, mas como oportunidades de fazer surgir o outro-não-pensado: modelo biológico, linguístico, psicanalítico e cultural. O corpo que enuncia, enfim, não pode ser desconsiderado, já que a crítica provém dele, sendo espaço discursivo de circulação de experiência e imaginação: as metáforas[11] da escrita não são inocentes; pelo contrário, elas são responsáveis pelo deslizamento dos sentidos, os quais podem ser outros inevitavelmente.

Ruth Silviano Brandão[12] – na prática de leitura da escrita feminina tida como de linha “francesa” – lembra algo importante também: o quanto a personagem feminina, criada no âmbito do pensamento masculino, não coincide com A “mulher”. Com isso, o texto literário, mistura de vozes que é (nem sempre em presença isonômica entre si), torna-se lugar do impossível, já que “mulher” seria mais uma tentativa de expressão de um desejo masculino, miragem. Daí as “mulheres” feitas por “homens”, suspensas entre aspas, funcionam a partir de equívocos e paradoxos, “passageiras da voz alheia”. Tal representação do feminino, então, opera por um desejo de posse que ocorre na linguagem, uma vez que funciona a partir da crença de que a língua é transparente, como se pudesse fazer coincidir miragem e “realidade”. A “mulher” de parcela expressiva da literatura ocidental, portanto, projeta-se como uma alienação de um desejo masculino no qual certo “eterno feminino” produz efeito de completude, uma espécie de ficção – já que toda (a) realidade o é – criada pelo horror da castração, simulacro de feminilidade que se naturaliza na cultura na ilusão do Um, que, na verdade, é dispersão.[13] Tal problemática recrudesce à medida que acrescentamos outros pontos à problematização, como a interseccionalidade: com esta, gênero, etnia, classe social, por exemplo, são pensadas em novas relações.

A partir deste referencial teórico com que estamos dialogando até o momento, chegamos, enfim, ao que pretendemos refletir sobre a “escrita de autoria feminina”. Carla Rodrigues[14], pensando com Derrida, entende o “masculino” para além do gênero enquanto marca sexual, mas como regime de pensamento marcado pelo falofonologocentrismo: centrado na crença no masculino, na presença do sentido e na razão como única saída de explicação e valoração de qualquer realidade. O feminino, portanto, seria um regime de pensamento que aponta para as fissuras, as sombras, do universo racional masculinista, de forma que este não pode mais ser entendido como estável, único. Assim, a todo masculino corresponde um não-masculino (o qual não pode ser confundido com feminino, pois, se não, este continua sendo entendido por oposto binário àquele) que o antecede e faz funcionar, o que lhe atribuir caráter de indecibilidade. Sendo assim, não há significação definitiva, mas aquela que se constrói a cada enunciação e a cada ato de leitura: da mesma forma que não há origem sem relação a uma não-origem, que instaura a diferença (differánce derridiana). Estamos diante de uma crise contemporânea do pensamento do masculino; com isso, o feminino será um exercício e uma prática necessária e impossível, já que aponta para o “por vir”, aqueles sentidos que podem ser, mas ainda não são por questões hierárquicas, de poder, e não por qualquer natureza (a qual só pode ser mencionada enquanto efeito).

O que propomos ao leitor que inicia a leitura desta coletânea é tentar vislumbrar conosco, ainda que por relances que não podem durar para haver movimento nas reflexões, a literatura de autoria feminina para além de questões temáticas. Da perspectiva que assumimos até aqui, ela se funda, principalmente, em um uso da linguagem que assume suas falhas, sua incompletude, seus tropeços, autorizando-os como matéria-prima. Assim, talvez, a literatura feminina caracterize-se mais pelo funcionamento que propõe das línguas e das múltiplas linguagens a que venha se apropriar no processo de textualização. Isso é necessário para se apontar um uso outro da língua, irredutível ao estabelecimento a priori de coerência e coesão canonicamente dadas pelas gramáticas, fazendo-se enunciar pelos mais diversos gêneros dos discursos – em especial, os marginalizadas na diacronia ocidental – primando pelos hibridismos não só no processo de textualização, mas como (im)possibilidade de “fazer sentido” e de se olhar para o mundo.

Portanto, fazer, ler e circular literatura de autoria feminina é, acima de tudo, oferecer aos sujeitos a possibilidade ética de uma hospitalidade incondicional ao outro, aceitando-o como irremediavelmente outro, oferecendo-lhes, então, a responsabilidade infinita de produzir sentidos ainda por vir, impossíveis. A impossibilidade é a marca de uma escrita e de um pensamento femininos, no qual o não previsto, dialogando com o masculino, aparece e desaparece, em um movimento necessário de presença adiada e ausência que se impõe, para que o novo e o outro sejam condição e não exceção: não fraturas do espelho de Narciso, mas o próprio espelho onde se pode mirar.

Assim, acreditamos que esta coletânea possa ser um exercício dialógico para mais de uma experiência. Em primeiro lugar, com a leitura prazerosa, cujos olhos passeiam desconhecendo a chegada (e, se esta é desconhecida, todos os caminhos enunciativos servem). Em segundo lugar, pensando o trabalho a que alunos e professores se propuseram, horizontalmente, a pensar os limites e possibilidades da escrita feminina. Em terceiro lugar, como “por vir”: que esta coletânea abra para caminhos imprevistos, análogo ao pensamento do feminino, alimentando não só outras práticas de leitura, de escrita, de enunciação, mas também fazendo-nos pensar qual o papel que tal literatura de autoria feminina pode ainda desempenhar no imaginário que o funcionamento escolar ajuda a cristalizar na cabeça dos sujeitos, interpelados. Com isso, o “feminino” está para além de Capitus, Luízas, Kareninas, Bovarys, Sinhás Vitórias, mas é a própria possibilidade de o docente pensar uma “aula outra”, em que a alteridade intervenha não como o diferente, mas como possibilidade do sujeito relatar a si mesmo[15], despossuído do cânone como única saída do relato de si. Entendendo-nos, com a ajuda da literatura de escrita feminina, como desde sempre outros, despossuídos de nós mesmos, estamos prontos para sermos mais responsáveis pelo outro, enquanto irremediavelmente outro, assim como nós, habitantes de espelhos da imagem alheia.

Prof. Dr. Jacob dos Santos Biziak[16]
Palmas/Paraná, 14 de agosto de 2017

1- WOOLF, V. As ondas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
2- BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão; rev. trad. Marina Appenzeller. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
3- SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. Trad. Deise Amaral. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
4- PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi [et al.] Campinas: Editora da Unicamp, 1997a. PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. Tradução Maria das Graças Lopes
5- Showalter, E. Op. cit., p. 28.
6- DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora. Perspectiva, 1971.
. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997 . Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, 2004.
7- ORLANDI, E. P. “Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites do simbólico”. Rua, Campinas, 4:9-19, 1998.
8- BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2ª ed, 2009.
9- Pêcheux, M. Op. cit.
10- Showalter, E. Op. cit., p. 30-31.
11- “A paráfrase e a metáfora explicitam-se, pois, enquanto procedimentos de análise. Esta é, para mim, uma marca da especificidade da análise de discurso: ela introduz uma noção não linguística de paráfrase e uma noção de metáfora que não deriva da retórica, ou dos estudos literários, assim como uma noção de “memória” que tem suas determinações que não são psicológicas, cronológicas etc. A relação entre essas noções e o modo de procedimento da análise de discurso, ligando o que é estabilizado e o que é sujeito a equívoco, no movimento da descrição e da interpretação vai marcar profundamente os estudos da linguagem”. (ORLANDI, E. P. A Análise de discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil. In: SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DE DISCURSO, 1., 2003, Porto Alegre. Anais do… Porto Alegre (RS): UFRGS, 2003. [CD-ROM]).
12- BRANDÃO, R. S. Passageiras da voz alheia. BRANCO, Lucia Castello e BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2004.
13- Pensando com Lucia Zolin, não podemos nos esquecer que tais personagens femininas criadas em um imaginário masculino não são propriedade e nem praticadas discursivamente somente por “homens”: se acreditásemos nisso, faríamos a discussão cair em um esencialismo muito perigoso. Dessa forma, esse feminino é um efeito operado na linguagem; logo, pode ser atualizado pela enunciação de sujeitos que se identifiquem como “mulheres”. Isso quer dizer que, na literatura de autoria feminina, também há registro de autoras que ajudaram a recuperar um interdiscurso da ilusão de completude do feminino a que Ruth Brandão se refere.
14- RODRIGUES, Carla. Duas palavras para o feminino: hospitalidade e responsabilidade. Sobre ética e política em Jacques Derrida. Rio de Janeiro : NAU Editora/Faperj, 2013.
15- BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
16- Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil – jacob.biziak@ifpr.edu.br. Pesquisador de pós-doutorado, projeto “A angústia que (não) se enuncia: um pensamento do feminino”, realizadado em dois âmbitos: sob supervisão da Profa. Dra. Carla Rodrigues, no PPGF/IFCS da UFRJ, e, também, no IFPR, campus Palmas.
Ano de lançamento

2017

Formato

ISBN [e-book]

978-85-7993-461-2

Número de páginas

156

Organização

Jacob dos Santos Biziak, Kátia Cilene S. S. Conceição