(D)eficiências e preconceito (in)visibilidades da deficiência no cinema. Vol IV

Fátima Elisabeth Denari

APRESENTAÇÃO

A obra aqui em relevo traz inúmeras histórias de luta, verdades, amores, sabores, desejos, pulsões emocionais, paradigmas, preconceitos, decepções e frustrações, assim como a própria vida se organiza, seja espelhada em produções cinematográficas ou para muito além delas. Por meio dessa energia e pulsar é que surge uma linda coleção de textos que analisam teorias, conceitos, perspectivas históricas, culturais e sociais no campo da deficiência, bem como inúmeras produções fílmicas sobre pessoas com deficiências.

Desse tecido se reveste essa brilhante obra, organizada pela alma e intenção da querida e estimada professora e amiga Fátima Denari, cuja feitura pedagógica e didática é poesia, nos ditos e olhares em sala de aula ou prosas faceiras aqui e acolá, uma traquinagem vestida de menina bondosa. Antes de comentar sobre o livro, atrevo-me a falar mais um pouquinho dessa personagem carismática e dizer que a vejo como um filme, dos bons, aqueles em que podemos alongar as pupilas e sentir sem pressa o emaranhado de cores, sons, poesias e palavras desfilando na tela, um filme em forma de professora “boa gente”, daqueles típicos musicais estrelado por Ricky Martin ou Hugh Jackman.

Da arte cinematográfica saíram as inspirações para a maioria dos textos que enxertam vida e entusiasmo aos debates e contribuições teóricas desse livro, tocando em temáticas como amor, sexualidade, políticas públicas, família, direitos e garantias, relações de poder, relacionamentos, barreiras, preconceitos, estigmas e conquistas das pessoas com deficiências. Por meio da leitura tão vasta em abordagens, assuntos e conteúdos, embora tratem sobremaneira da sexualidade de pessoas com deficiências, permitem colocar os holofotes sobre incontáveis paradigmas históricos, tabus, problemáticas, discursos, comportamentos e interpretações reducionistas que naturalizam a deficiência como problema individual,tragédia pessoal ou matéria de comiseração ou misticismo.

Os leitores, ao se aprofundarem nos textos poderão compreender que a deficiência precisa ser vista/entendida enquanto um fenômeno social, representando o resultado de inúmeras experiências de violência, discriminação, desigualdade e opressão projetadas ao longo dos tempos sobre esse segmento da população, em função de possuírem corpos amputados, deficientes, disfuncionais e lesionados. Dessa maneira, a deficiência é entendida como sendo produzida por realidades desfavoráveis, ausência de direitos e condições dignas de vida, colocando-as em uma arquitetura de desvantagem ou descrédito social.

Os textos retomam debates históricos e sociais, ilustrando estigmas, preconceitos, violências, materialidades, frustrações, anseios e desejos que remetem às pessoas com deficiências, cujas limitações, lesões e impedimentos de natureza física, corporal, funcional, intelectual, cognitiva, sensorial e múltipla, em contato com mecanismos, pensamentos e instrumentos sociais discriminatórios, barreiras físicas e estruturais, privações de acesso à tecnologia, bens e serviços especializados, ausência de políticas de inclusão e equanimidade e outras, tolheram e limitaram muitas experiencias e experimentações de vida, especialmente as de natureza erótica e sexual.

Embora alguns filmes analisados ainda teimem em enaltecer a condição de excepcionalidade e vislumbrem diante de fatos e situações ordinárias, apenas e somente por serem protagonizadas por pessoas com deficiências, os leitores ainda se depararão com textos que comentam filmes em que são tecidas com simplicidade, sensibilidade e primor amores, fantasias, lutas, tragédias, subjetividades e vidas que foram forjadas, marcadas e influenciadas por períodos históricos, constructos ideológicos, discursivos e culturais, nuances políticas, premissas estéticas e questões familiares, sociais e identitárias.

Como dito, o livro traduz esforços de autores que se empenharam para apresentar inúmeras realidades que pulsam no seio das práticas e das relações envolvendo pessoas com deficiências. Os filmes que serviram de alimento para alguns textos são vivos, singulares e evidenciam uma dada realidade histórica, cultural e social, uma composição de narrativas cotidianas, pensamentos, atitudes, preconceitos e premissas do tempo presente e de outrora e, ainda, descortinam muitos paradigmas e preceitos validados, perpetrados e amalgamados no constructo da sexualidade de pessoas deficientes.

Os diversos capítulos e prismas pelos quais projetam a sexualidade de pessoas com deficiências permitem repensar a própria construção de sexualidade humana, uma sexualidade moldada por meio de padrões, teorias e conceitos historicamente moldados e cristalizados por meio de práticas, ideologias, comportamentos e processos educativos formais ou informais, uma sexualidade normativa, funcional, penetrativa, “genitalizada” e procriativa, amplamente enraizada nas sociedades ao longo dos processos civilizatórios. Outrossim, corpos lesionados, amputados, assimétricos, disformes e disfuncionais permitem subverter tais modelos, projeções e práticas eróticas e sexuais naturalizadas no imaginário coletivo como adequadas ou normais. Não existe uma sexualidade deficiente, antes que alguém venha a perguntar.

Cabe frisar que o que importa tanto quanto as histórias, fatos e conceitos narrados e problematizados neste livro, são os próprios ecos que ele suscita, o não dito, aquilo que é abafado, a exemplo da ausência de obras cinematográficas que colocassem em evidência a mulher com deficiência, uma crítica que cabe à indústria cinematográfica como um todo, por negar esse espaço a elas. Muitos filmes analisados também revelam posicionamentos, pensamentos e atitudes que, a priori, poderiam significar amor, carinho, cuidado, proteção e acolhimento perante as pessoas com deficiências, mas que, em grande parte, representam ainda a presença e a força de preconceitos, teorias, estigmas, tabus e retrocessos perpetrados histórica e socialmente.

Fato que pode ser apreendido a partir de um dos textos que apresenta adescrição de umadas cenas do filme “Hoje eu quero voltar sozinho”, na qual o personagem Leonardo é alertado pela mãe que não poderá ficar na casa da avó, pois ela tem um compromisso médico e, assim, a mãe ao desconsiderar a possibilidade de ele ficar sozinho na casa avó, traduz o comportamento protecionista e assistencialista que despotencializa, desacredita, subjuga e tolhe experiências, estímulos e oportunidades.

Já no texto que analisou o filme “Yo también”, o leitor poderá encontrar um outro exemplo do que chamo de “eco” mediado pelo preconceito, remetendo-se à descrição da cena em que a mãe do personagem Daniel menciona que uma mulher considerada normal não se interessaria por um rapaz como ele, alguém com Síndrome de Down, denotando como muitas relações entre pessoas com e sem deficiências ainda são apreendidas como estranhas, anormais, incomuns ou incompatíveis, relacionamentos que são alvo de análises médicas, representados ainda como perversão, desvio, patologia ou desordem obsessiva, como no caso dos Devotees, pretenders e wannabes (DPW’s).

Tanto Leonardo quando Daniel, representam a realidade e a jornada de muitas pessoas com deficiências pela necessária independência, autonomia e emancipação de personagens reais, os quais muitas vezes precisam lidar com olhares, pensamentos e ações que ainda teimam em remeter à deficiência como algo negativo, patológico, descrédito social, falta, condições que despotencializam e inferiorizam, tolhendo direitos, acesso e garantias à bens, serviços e tecnologias acumuladas historicamente, assim como espaços, moradia, lazer, educação, trabalho, saúde, lugares e projeções de vida digna e gozando de bem estar social e, claro, à sexualidade.

Falamos aqui da tão proclamada autonomia e independência das pessoas com deficiências. Podemos então pensar: Autonomia para quê? Independência de quê? As discussões sobre o filme/obra “O filho eterno” e “Marina não vai à praia”, por exemplo, trazem à tona esses enredos, com personagens que clamam por voz e vez, por emancipação, gritos de e para o acesso aos mais variados bens, suportes, infraestruturas, serviços e garantias à dignidade humana e, claro, à sexualidade humana.

Os leitores acessarão outros textos que também abordam assuntos afetos à autonomia e independência e, ainda, possivelmente compreenderão que muitas pessoas com deficiências sempre necessitarão de ajuda, de apoio, rede de suporte e cuidados, de acessibilidade, de assistência médico-terapêutica e essa realidade não deve ser vista como incomum ou problemática.

Deve-se dar condições para que as pessoas com deficiências não apenas recebam esses suportes, cuidados, apoios e serviços, mas, e, principalmente, tenham autonomia e independência para escolher terapias, suportes, equipamentos e quem irá atendê-las, ajudá-las, assisti-las em suas necessidades, quem poderá ou não as tocar. Não é apenas sobre fazer algo sozinho ou ser capaz de, tampouco sobre morar sozinho, ter salário ou algo que o valha, é sobre ser entendido, respeitado, valorizado e creditado como pessoa. Como bem coloca um dos autores, serem aceitas como “pessoas completas”.

Aqui é possível se inquietar com a questão de que numa sociedade fortemente funcionalista e capacitista, que ainda concebe a deficiência como problema, falta ou incapacidade individual, a conquista da autonomia e independência estariam associadas à possibilidade dessas pessoas se aproximarem da normalidade, reabilitadas, curadas, tratadas ou adaptadas às condições sociais, tecnológicas, informacionais e laborais.

É imprescindível garantir a autonomia e independência às pessoas com deficiência, seja qual for a sua condição física, motora, funcional, anatômica, intelectual e sensorial, mesmo que exista uma discussão concomitante sobre os possíveis níveis e alcances dessa realização. No filme “Como eu era antes de você”, o jovem Will ao decidir cessar a sua história de vida, traz o debate que toca na necessidade de permitir que cada pessoa com deficiência exerça seus direitos, até com relação a decidir viver ou não. Embora não integre a lista dos filmes que foram analisados nos capítulos desse livro, o filme “Mar adentro”, dirigido por Alejandro Amenábar, também apresenta a história de uma pessoa com deficiência que luta pelo direito de dar fim à sua existência e que acaba entrando em conflito com a sociedade, a igreja e sua família e merece aqui à menção. Temáticas como eutanásia ou suicídio assistido são polêmicos e, claro, ao pensarmos no contexto das pessoas com deficiências pelo prisma meramente biológico e médico, talvez ainda beire uma amarga distopia.

Outros encontros e desencontros são descortinados neste livro, fatos, histórias e acontecimentos que moldam não apenas as vidas das pessoas com deficiências, mas também de seus pares, familiares, semelhantes e todo o tecido social. Rejeição, descrédito social, exclusão, discriminação e preconceitos que são matizes de uma violência histórica e que foi se alterando no curso das civilizações. Como discorre o professor e teórico dos Estudos da Deficiência, Sadao Omote, esses sentimentos em face das pessoas com deficiências foram se modificando de acordo com as realidades sociais, culturais e históricas, circunscrito sempre em função de quem é o observado e quem são os observadores (audiência).

O capítulo que analisou o filme e a obra “O corcunda de Notre Dame” aproximará os leitor desse típico (e inaceitável) sentimento de estranhamento, rejeição e descrédito social que recaí sobre o personagem principal, o Quasímodo (sineiro da igreja), que é pessoa com múltiplas deficiências (surdo, deficiente físico e visual) e era observado pela sociedade daquele século XV como feio, mau, alma ruim, diabo e deformado, um tipo de careta, algo a ser evitado, um corpo que transgredia os padrões estéticos, anatômicos e idealizados pelo imaginário coletivo e, porisso, era relegado às margens, às trevas e maldizeres, especialmente no seio de uma cultura fortemente moldada por dogmas, doutrinas e preceitos religiosos.

Uma pergunta que subjaz é “E agora como é que é?”. Para além dos vértices religiosos, monarquias, lendas e preconceitos de um clássico que fora escrito no ano de 1.830, os desejos, afetividade, erotismo e sexualidade em face os corpos com lesão, deficiências e assimetrias, são garantidos, vistos e reconhecidos? Numa perspectiva histórica, social, cultural e política, cabe até mesmo perguntar se são efetivamente requeridos e quais deles integram as agendas reivindicatórias das próprias pessoas com deficiências no Brasil. Nessa esteira, um dos capítulos do livro coloca em relevo o significado das lutas, conquistas e processos que marcam a construção identitária de pessoas com deficiências. Revela-se, assim, a identidade como uma categoria elaborada socialmente por meio de práticas discursivas, moldada nas e pelas relações de poder, linguagens e outros atributos culturais e históricos. Já a identidade coletiva representaria os esforços de um grupo em prol de suas vozes, representatividade e reconhecimento social, compartilhando interesses, ideias e olhares em comum. No caso das pessoas com deficiências diz se tratar de identidades horizontais, pois não dependem de herança familiar e, sim, de aproximações, trocas e significados afetos a uma dada coletividade.

Um importante fato histórico que ilustra sobremaneira essa construção identitária coletiva é o surgimento dos movimentos sociais voltados à reivindicação dos direitos das pessoas com deficiências, ao final dos anos 1960, opondo-se às situações de exclusão, violência e marginalização vividas por esse coletivo, eram os denominados Disabylity Rigths Movement. Na Inglaterra, por exemplo, um dos principais movimentos surgiu a partir da organização dos residentes de uma instituição especializada no atendimento de deficientes físicos, chamada Le Home Court Cheshire e dentre as reivindicações estava a cobrança por maior representatividade na gestão da instituição, liberdade para escolher o horário de dormir, para ingerir bebidas alcoólicas, relacionar-se e fazer sexo sem interferências.

Aqui percebe-se a necessidade de reforçar os debates sobre o acesso à direitos fundamentais, garantindo oportunidades, benfeitorias e um pleno estado de equanimidade, dignidade e qualidade de vida. Ademais, salta aos olhos, especialmente daqueles menos ávidos, a importância salutar de que as pessoas com deficiências tenham nesse bojo de direitos, a liberdade e garantia de viverem plenamente sua sexualidade, seja recebendo orientações, serviços, informações e educação sexual ou namorando, praticando sexo, consumindo produtos, terapias e outros serviços sexuais, frequentando espaços e lugares acessíveis.

Viver a sexualidade, ter experiências sexuais e eróticas é potencializar o corpo, abrir-se ao mundo, perceber o corpo como laboratório da e para a vida, um tipo de vetor semântico, como afirma o antropólogo francês Le Breton, é a vida sentida e percebida na sua textura perceptível, físico-corpórea, sensual, fluida e poética. Trata-se de conceber e entender toda a nossa geometria corporal, corpos cujos experimentos, sensibilidade e performaticidade se projetam por meio de oportunidades e sentidos canalizados na e pela relação com outros corpos. É ele mesmo, o corpo, que precisa ser catapultado, protagonizado e politizado em nossas práticas e relacionamentos com o mundo, com o outro, consigo próprio.

Pessoas com deficiências são também pessoas corporais, corpos que dialogam e anseiam por seus espaços, enlaces e conquistas. Os corpos assimétricos, lesionados, amputados, desajeitados, desproporcionais e anormais que precisam ser reconhecidos como corpos possíveis, desejados, corpos que dão e recebem prazer, corpos belos. É preciso transcender estigmas, barreiras estéticas, sociais e culturais e para usar uma expressão cunhada pelo canadenseAndreus More, ativista no campo da deficiência, vamos “deliciar a deficiência”. Inegavelmente, a autoaceitação ou mesmo a aceitação familiar e social passam pela atmosfera corporal.

As narrativas fílmicas como as expressas nesta seleção de textos e suas subsequentes análises cunhadas a partir de variados referenciais teóricos e produções científicas, bem como por meio dos olhares analíticos dos autores, permitem visualizarmos, repensarmos e até mesmo subvertermos inúmeros paradigmas e preconceitos arraigados no seio das sociedades, em particular, em muitas realidades familiares e sociais de pessoas com deficiências.

Trata-se de obras que permitem entrar nos “bastidores” de muitas vidas, observá-las em cenas cotidianas, materialidades, nuances e em relações que poderiam ser (e muitas vezes são) verdadeiras, coloridas de realismo, textura factual. Como a cena do filme “Hasta la vista”, na qual Philip (tetraplégico), em férias com a família, observa com atenção duas jovens garotas realizando uma corrida matinal pela praia e talvez imaginando como seria sua vida se estivesse em outro corpo. Esse filme foi analisado em dois capítulos e tematizam, à luz de contribuições teóricas, o drama vivido por três amigos com deficiências que ensejam uma bonita e digna caminhada em busca de suas primeiras experiencias sexuais. Até mesmo a intenção de projetar essa história ficcional (bem que poderia não ser!) a partir de um típico road movie, sugere uma liberdade, um desejo, um prazer erótico e sexual, que só conseguiriam ser satisfeitos em outro lugar, outro canto, outro país, “pegando a estrada” (metáfora da vida) da Bélgica à Espanha.

No capítulo que analisa o filme “Vermelho como o céu”, é possível aos leitores assimilarem saberes e reflexões sobre a deficiência visual e todo o seu universo teórico, técnico, legal e sócio-histórico. O filme em questão apresenta a história de vida de Mirco Balleri e sua paixão pelo cinema. Um homem com cegueira em meio a desafios, estímulos, privações e sonhos, na Itália dos anos de 1970, cuja força e obstinação o tornou o melhor editor de som da cinematografia italiana na atualidade.

Alguns textos destacam com bastante intensidade as narrativas cotidianas vivenciadas pelas pessoas com deficiência, junto à suas famílias, amigos e perante suas inúmeras relações com o mundo circundante. A maioria das obras analisadas descrevem momentos conflituosos e tensões que se estabelecem na vida de pessoas com deficiências, especialmente quando estão em pauta seus direitos, vontades, desejos e liberdades. Em relevo também estão as incontáveis situações em que remetemos à coragem e a persistência dos deficientes para superarem barreiras, constrangimentos, violências, inseguranças e desafios impostos a seus social e historicamente a seus corpos lesionados, disfuncionais, assimétricos e disformes

Nesse momento, importa também refletir sobre o quanto a própria ideia e/ou discurso reificante de superação, seja no âmbito das produções fílmicas e debates teóricos ou face o próprio imaginário coletivo, não reforça a deficiência como algo negativo, defeito, problema ou dificuldade, uma condição que precisa ser “superada”. É salutar e inadiável o nosso compromisso diante da necessidade de envidarmos esforços para que a deficiência seja entendida e admitida por meio da sua própria potencialidade, singularidade e estética. Não há nada para ser superado no que tange à condição de deficiência e corpos lesionados, disfuncionais, disformes, deficientes e assimétricos. Se quisermos superar algo, que seja nossa ignorância, preconceitos, pensamentos e atitudes que as violentam, maltratam e subjugam.

Mesmo os filmes que abordaram a vida de pessoas com deficiência de maneira mais sensível, amorosa ou romântica, ao tratarem a questão por um viés essencialmente individual, médico e biológico, coadunam com abordagens e pensamentos cristalizados social, cultural e historicamente, abordando as deficiências, sejam elas físicas, motoras, sensoriais, intelectuais ou mentais, como algo problemático, doloroso, algo a ser tratado, curado, reabilitado, medicalizado, um corpo que precisa ser melhorado e/ou adaptado à realidade em que vive. Até mesmo jornais, reportagens, comerciais e outras produções insistem em construir e reforçar a imagem dessas pessoas como frágeis, sofridas, incapazes, dignas de piedade.

Os leitores poderão observar a partir desta obra e, em particular, no capítulo “O estigma de “deficiente””, inúmeros estudos abordando temáticas relacionadas ao estigma, preconceito, discriminação e violências perpetradas contra pessoas com deficiências no ambiente familiar, laboral, educacional e demais espaços de seu convívio social. Leitura que permitirá entender facetas dessa violência simbólica, verbal,física, atitudinal e institucional sofrida por elas, como no caso de mulheres com deficiência que se encontram duplamente vulneráveis e o quanto precisamos envidar esforços para mudar esse cenário e seus efeitos deletérios à autoimagem, autoestima, subjetividade, identidade e à vida dessas pessoas.

Aqui reforça-se a premência de apreendermos a deficiência enquanto fenômeno social e histórico, produzida no seio de sociedades desiguais e opressoras, por meio de discursos normativos, médicos, regulatórios e autoritários. É o senso de normatividade que deve ser questionado, já que dificulta a manutenção de relações mais saudáveis, afetivas e empáticas com aqueles que não atendem aos padrões, preceitos e expectativas normativas. Convido os leitores a lerem sobre temas como desvio, estigma e normatividade a partir do filme “Coringa: uma carta fora do baralho”. Como expressou a saudosa professora Lígia Amaral, em um texto chamado “Entre crocodilos e avestruzes”, é preciso superarmos esse fosso de crocodilos (preconceitos) que não permitem chegarmos do lado de lá.

O livro apresenta um relevante debate sobre a assistência sexual profissional às pessoas com deficiências, presente, também, nos capítulos que analisaram os filmes “Hasta la vista” e “As sessões”, direcionando os leitores para a premência dos serviços e profissionais especializados no atendimento sexual para a ampliação das oportunidades, práticas, saberes, vivencias e realizações sexuais e eróticas desse público.

O filme “As sessões”, inspirado na história Mark O’Brien, jornalista e escritor, apresenta com destemor e sensibilidade a jornada de uma pessoa com deficiência para obter conhecimentos e experimentações práticas que permitissem satisfaz escolhas, desejos e anseios no âmbito sexual, erótico e amoroso. O que poucos sabem é que ele publicou, inicialmente, um artigo no jornal The Sun, em idos de 1990, no qual descreveu sua história e percepções a partir das sessões de terapia sexual e como sua vida sexual e amorosa mudou após esse período.

A própria história e trajetória profissional da terapeuta sexual Cheryl Cohen Greene, que atuou como substituta sexual no atendimento a Mark, é valiosíssima para refletirmos sobre essa questão, pois no curso de sua atuação profissional já conta com centenas de atendimentos às pessoas com deficiências, cujas experiências foram compartilhadas em seu livro “As sessõesminha vida como terapeuta sexual” e, assim, coloca luz sobre outros possíveis caminhos à sexualidade.

O aprofundamento das análises teóricas e perspectivas sóciopolíticas, legais e culturais que remetem a essa importante temática, poderão ser acessadas pelos leitores no capítulo “Asistencia sexual para personas con discapacidad: publicaciones en Brasil”, permitindo, inclusive, entender a dimensão histórica, sociológica, paradigmática e diferentes concepções sobre a assistência sexual de pessoas com deficiências. Trata-se, antes de tudo, do direito de acesso ao próprio corpo, às terapias sexuais, profissionais e assistência sexual para pessoas que em função de suas lesões, comprometimentos físicos, sensoriais e intelectuais, disfunções e amputações, não tiveram e ainda não tem as mesmas oportunidades de explorar e viver a dimensão sexual e erótica de seus corpos.

Esse livro apresenta personagens como de Mark, Will, Philip, Quasímodo e tantos outros que precisam explorar suas potencialidades, poéticas e dimensões corporais, como já frisado até aqui e, claro, por meio de suas próprias experimentações sexuais, com acesso a políticas voltadas à área da sexualidade, esta entendida como dimensão nuclear na construção e reconhecimento de nossa realidade, materialidade e existência histórica, social, política e erótica. Existiria algo mais terapêutico do que o próprio sexo? A descoberta do corpo, dos seus inúmeros prazeres, sentidos e sensações, certamente passa pelas tramas eróticas, pelo amor e descobertas sexuais vividas pelas pessoas com deficiências.

Como sugeriu o cineasta russo Andrei Tarkovsky, os filmes possuem uma miríade de significados e se você procurar um significado, vai perder tudo o que acontece. Num filme, quando paramos para entender o dito, não conseguimos perceber o não dito. Deixo, então, a sugestão para que possamos nos maravilhar com a leitura deste livro e com a mesma energia e disposição assistirmos a todas as produções cinematográficas apresentadas e analisadas nesta obra e, assim, observarmos suas poéticas e provocações.

 

Brasília, dezembro de 2020

2º Tenente QOCON PED Everton Luiz de Oliveira
Doutor em Educação Especial
Adjunto da Subdivisão de Pesquisa e Desenvolvimento
Força Aérea Brasileira – Diretoria de Ensino (DIRENS) Brasília – D.F

Ano de lançamento

2020

Formato

ISBN

978-65-5869-351-2

ISBN [e-book]

978-65-5869-391-8

Número de páginas

198

Organização

Fátima Elisabeth Denari