Distopia, barbárie e contraofensivas no mundo contemporâneo

José Rubens Mascarenhas de Almeida, Luci Mara Bertoni

APRESENTAÇÃO

Há muito vivemos tempos difíceis… E, por mais que proferir “vivemos tempos difíceis” possa parecer um clichê um tanto replicado, expressa sentido nesse momento vivido, inclusive pela dificuldade de compreendê-lo, vítimas que somos do estupor promovido pelas contradições sistêmicas do capitalismo, impulsionada pela duradoura crise apresentada há bastante tempo.

Nesse cenário, no que diz respeito a esta apresentação, o ano de 2019 é a referência, posto que foi o ambiente de preparação e realização do XIII Colóquio Nacional e VI Colóquio Internacional do Museu Pedagógico, não aleatoriamente intitulado “Distopia, barbárie e contraofensivas no mundo contemporâneo”.

Perceber a atmosfera que respirávamos àquele ano como indicativa da barbárie que nos espreitava naquela quadra de tempo não se tratava de um mero derrotismo, mas do horizonte de aprofundamento da crise capitalista – que alguns insistem em nominar civilizacional. Também nada tinha de sentimento escatológico, pois não prevíamos o elemento avassalador da pandemia de Covid-19, que nos cairia, especialmente no Brasil, como golpe de misericórdia.

Sensivelmente, havia uma inquietação política e social produzida no contexto vivenciado, a contaminar nosso tempo, marcadamente distópico, de forma a não nos permitir ser otimistas. Tempo antropofágico, coroado por uma crise sanitária sem precedentes neste novo século e milênio, distópico, antiutópico e barbárico, testamentado no seio do sistema capitalista. Assim, esses “tempos difíceis” não dizem respeito apenas ao fenômeno da pandemia, mas, primeiramente à crise da sociedade capitalista, marcada pela deterioração de seus aspectos econômicos, sociais, políticos e ambientais há muito presentes. E quanto mais se aprofunda a crise sistêmica, mais violência institucional, mais irascividade por parte da burguesia, mais barbárie e, consequentemente, distopia. Violência que choca, que paralisa e que leva à letargia.

Frente a esse dantesco quadro, o Museu Pedagógico realizou seus colóquios entre os dias 15 e 18 de outubro de 2019, em Vitória da Conquista, Bahia, Brasil, dedicando-os à reflexão acerca daquele momento, marcado pela ocorrência de eventos expressivos, apontando para imprevisibilidades históricas e trazendo consigo o medo das incertezas de um presente e futuro que se veem assolados por fantasmas que antes já assombraram a humanidade e que pensávamos já estivessem mortos e enterrados pela história: irracionalismo, fundamentalismo religioso, terrorismo estatal, xenofobia, totalitarismo, arraigado nacionalismo, fascismo; eugenia racial, social e de gênero; anticientifismo e anti-intelectualismo… Uma conjuntura inconcebível – ou inaceitável – para a história contemporânea e que concorre para um extremo aviltamento humano e social, impondo à imensa maioria da humanidade um pesadelo com propensões totalitárias, reduzindo a existência humana ao caráter instrumental de alienação aos padrões da linha de montagem capitalista.

Naquele cenário – que hoje se vê aprofundado – é que a temática foi pensada, como um momento de reflexão acerca de tão incômoda conjuntura, buscando responder, em uma perspectiva interdisciplinar, a cruciante realidade. E, a convite da dialética, evocamos a rebeldia naquele/nesse momento de colheita dessa semeadura distópica, marcadamente mais contraofensiva que de resistência, para realizar um balanço crítico e propositivo da realidade contemporânea, percebendo que, apesar da letargia reinante, é possível se falar também de utopia. E o fruto dessas reflexões estão aqui representados – não se trata da totalidade das produções desses eventos (os colóquios temáticos), apenas de representações dela, que apresentamos com grande satisfação.

Assim, o texto que inaugura esta obra desenvolve sua análise centrada na conjuntura recente vivida pela sociedade brasileira, abarcando elementos da ordem econômica, política, ideológica e educacional. Para tanto, Democracia, violência e antiintelectualismo, ensaio escrito por José Luís Sanfelice (publicação póstuma), parte do pressuposto de que a democracia, referenciada no tema, é a da forma burguesa, no seio da qual emergem os períodos mais obscuros em que, por razões várias, mas principalmente econômicas, impõe regimes políticos de exceção, autoritários e ou totalitários. O nazifascismo e as ditaduras latinoamericanas – disfarçados ou explícitos – estão aí para testemunhar, quando as próprias instituições burguesas ou práticas democráticas foram ignoradas ou abandonadas. Sanfelice indica que a violência intrínseca do modo de produção capitalista, sistema alicerçado na exploração do trabalho alienado, é o lócus onde se implanta a referida democracia burguesa. Este trata-se de um texto propositivo face aos iminentes riscos de um caminhar para a barbárie e, perante uma distopia avassaladora que se apresenta, busca evidenciar possibilidades de utopias transformadoras, libertadoras, e, portanto, de caráter revolucionário, no sentido de se avançar rumo a uma nova democracia, a diferentes relações sociais de não exploração e a uma sociedade justa, igualitária e livre a se instaurar.

O segundo texto desta obra coletiva trata-se de Oponerse a la barbarie. Reflexiones sobre la utopía en un mundo (ya) distópico, de Juan Mainer Baqué, composição emanada da conferência de abertura do evento gerador desta obra, reflete acerca do significado e sentido da utopia, de forma crítica, no qual o autor fundamenta sua elocução sobre duas questões centrais: a primeira configurada no fato de estarmos em meio a um naufrágio civilizatório, um processo irreversível que conduz a humanidade a um possível colapso sistêmico; a segunda se refere à contraofensiva – entendida como práxis para organizar, coletivamente, uma oposição radical contra a barbárie que se nos impõe, a questionar a fatal separação entre natureza e cultura, que tem marcado o desenvolvimento da civilização capitalista e patriarcal ocidental. Para Mainer, o atual quadro de “totalcapitalismo” exprime o fosso entre o que é ecologicamente necessário e o que é politicamente viável caracterizado por uma gigantesca mutação.

Em Distopia e barbárie: as múltiplas faces do monstro que devora o século XXI, José Rubens Mascarenhas de Almeida retoma os conceitos de utopia, distopia e barbárie tendo em perspectiva o atual cenário brasileiro (que também é planetário, guardadas as particularidades), caracterizado, no seu entender, pela realização distópica e trágica de fenômenos sociais, tais como um visceral autoritarismo, retorno a crenças e ideias pseudocientíficas; arraigado e irracional anticientificismo e anti-intelectualismo; falta de perspectiva social etc., resultando em uma sensação de letargia ante a própria distopia reinante. Trata-se de um texto fruto da inquietação política e social que considera utopia e distopia como categorias relacionais que transitam entre a realidade presente vivida e a construção da realidade produzida, tendo o presente como parâmetro fundante de sua construção.

Rita Radl Philipp, em texto intitulado Desconstrução e construção das identidades de gênero. Considerações teóricoepistemológicas, debate, à luz do pensamento teórico feminista, questões étnico-raciais em uma realidade considerada pela autora como conservadora, argumentando que a concepção de gênero não pode manter a cisão entre sexo e gênero, e os modelos feminino e masculino empiricamente existentes. Nesse sentido, desperta o leitor evocando um chamamento a um novo contemplar que leve em conta a relação dialética entre fatores biológicos e sociais, e sociais de gênero, com o fito de se entender e solucionar a problemática das mulheres, ainda não resolvida na atualidade.

Em A realidade brasileira sob a metáfora do “ensaio sobre a lucidez” de Saramago. Democracia, violência, antiintelectualismo, Maria Ciavatta interpreta a realidade brasileira no contexto dos acontecimentos políticos que culminaram nas eleições de 2018. A partir da metáfora de um “Ensaio sobre a lucidez”, a autora nos guia na busca de compreensão da realidade da democracia em que se vive, mediante a intuição poética de Saramago e de alguns conceitos básicos. Trata-se de um texto teoricamente apoiado nos estudos engelsmarxianos do capitalismo, para ocupar-se da historicidade dos acontecimentos e perguntar, no intuito de entender o lugar e seu momento: “onde erramos?”.

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José Rubens Mascarenhas de Almeida
Luci Mara Bertoni

Ano de lançamento

2022

Número de páginas

242

ISBN

978-65-5869-806-7

ISBN [e-book]

978-65-5869-807-4

Organização

José Rubens Mascarenhas de Almeida, Luci Mara Bertoni

Formato