Engajamento em foco: língua, discursos históricos e representações sociais
Organização: Daniele Gallindo Gonçalves, Edmundo Narracci Gasparini, Luiz Barros Montez, Miriam de Paiva Vieira
APRESENTAÇÃO
PROMEL/LIEDH
Há alguns anos o Brasil vive uma crise profunda de legitimidade de suas instituições políticas fundamentais.
Ao constatarmos isto, não fazemos referência às crises institucionais pontuais, previsíveis e comuns. Como todos sabem, a governança de qualquer país, exigindo tomadas de decisões que afetam diariamente milhões de pessoas, se dá numa dinâmica que tensiona constantemente – evidentemente que em graus diferenciados – as instituições nas quais o poder é exercido. Isso é ainda mais evidente em sociedades mais complexas, atravessadas por processos acelerados de mudanças econômicas ou culturais. Nestas sociedades, algumas dessas “crises” surgem como fenômenos quase naturais, que sinalizam para a necessidade de “ajustes” institucionais que não necessariamente implicam esgarçamentos políticos traumáticos.
Contudo, a crise na qual o Brasil atualmente se encontra precipita-nos até o limite da ruptura, que sobrepuja em muito a capacidade de autocontrole do sistema político através de ajustes institucionais. Seu principal sintoma é o profundo desgaste da credibilidade de instituições republicanas fundamentais que, até há alguns anos, eram consideradas relativamente estáveis. Em alguns casos, esse desgaste apresenta como corolário outra ameaça concreta: a do completo colapso sistêmico dessas instituições.
Não nos compete nesta apresentação reconhecer as causas mais profundas dessa crise – ainda que devamos desde já localizar algumas de suas raízes num passado longínquo da história brasileira. Na verdade, ao longo de sua formação secular a burguesia brasileira nunca pôde se orgulhar de ter constituído instituições sólidas, na própria dinâmica da “via dita ‘americana’, na qual o produtor independente torna-se ele próprio progressivamente comerciante e capitalista”1 . A própria fundação da República não passou de (mais um) arranjo truculento das classes dominantes no Brasil, arranjo que (mais uma vez) reproduziu a cláusula pétrea que fundamenta a constituição do Estado brasileiro: a exclusão dos trabalhadores das decisões centrais. Num quadro histórico como este, marcado constantemente pelo arbítrio e por improvisações imediatistas, os poderes constituídos no Brasil dificilmente poderiam adquirir consistência e estabilidade de médio e longo prazo.
Contudo, aqui nos compete balizar alguns marcos dessa profunda crise. Seu momento mais agudo certamente foram as jornadas de junho de 2013. Nos meios acadêmicos, os diagnósticos das causas daquelas mobilizações são obviamente controversos. Seja como for, tendo sido determinadas ou não por uma “guerra híbrida” movida contra um governo progressista, conduzidas ou não por forças externas e orquestradas através de meios e modi operandi semelhantes a outras guerras conduzidas em diversas partes do planeta, as mobilizações de 2013 no Brasil arrastaram para as ruas multidões como nenhum outro movimento o havia feito em nossa história. Smartphones, redes sociais e outras mídias eletrônicas foram instrumentos decisivos naquelas mobilizações, e continuam sendo desde então os principais instrumentos de assujeitamento das consciências e de sua mobilização política.
Os marcos seguintes mais decisivos foram sucessivamente a fraude do impeachment, a disputa eleitoral de 2018, e, por fim, seu funesto desfecho. A hegemonia momentânea de ideologias profundamente reacionárias sobre a população brasileira vem desde então colocando na ordem do dia a necessidade da discussão acadêmica sobre o significado social dessas novas tecnologias de comunicação, bem como sobre as novas subjetividades constituídas por/através delas e as novas sociabilidades delas derivadas. Aqueles acontecimentos impuseram-nos a problematização do e a discussão sobre o lugar social dos intelectuais nessa conjuntura, a necessidade de definição mais precisa dos novos papéis que podemos desempenhar e das práticas possíveis de resistência aos inúmeros ataques contra os direitos econômicos e sociais, sistematicamente dirigidos desde então contra o povo brasileiro de maneira geral, e contra a universidade brasileira de modo particular.
Engajamentos constituem-se como atos políticos. No universo das ciências humanas, nas quais os autores da presente coletânea atuam, tais atos consubstanciam-se nas pesquisas como gestos de resistência. Pesquisas que põem em perspectiva social e histórica os indivíduos como sujeitos múltiplos, isto é, que os desconstroem como existências passivas, submissas e resignadas a forças “superiores” do destino. Além disso, tais pesquisas são atos de resistência porque lutam incessantemente contra a tentativa sistemática de esfacelamento de seu campo. E atos de resistência como atos de compreensão, pois buscam o entendimento de camadas mais profundas da vida social, particularmente através do exame de suas manifestações na/pela linguagem.
Em função disso, o evento realizado entre 29 e 31 de outubro de 2019, resultado da parceria entre o Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (PROMEL/UFSJ) e o grupo de pesquisas Linguagem e Discursos da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LIEDH/UFRJ), teve como mote “Engajamento em foco: língua, discursos históricos e representações sociais”. Durante uma semana pesquisadores qualificados de todo país debruçaram-se sobre o tema, e apresentaram suas pesquisas a partir de diferentes angulações e perspectivas: aquelas delineadas pelos estudos linguísticos, historiográficos, pedagógicos, literários, e pelo prisma da análise do discurso, da sociologia e das ciências políticas. As discussões orientaram-se pelo debate acerca das descontinuidades e deslocamentos advindos de tensões e conflitos, ora instaurados por meio de discurso(s) e problematizados a partir deles, ora originados por tensões de outra natureza, bem como daqueles problematizados por meio de poéticas e narrativas que concebem e convocam a experiência dos sujeitos na vida social, cultural e política.
Com vistas a uma organização básica (ainda que não perfeita, haja vista a natureza teoricamente híbrida de algumas contribuições), organizamos os textos do presente volume em quatro grandes grupos: 1- Perspectivas historiográficas e sociológicas; 2- Linguagem, discurso, resistência; 3- Representações literárias e 4- Engajamento na instituição escolar.
A coletânea que aqui se apresenta é ela própria resultado do engajamento de seus autores, que atuam como pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, e que, portanto, apresentam leituras de mundo de acordo com critérios científicos de cada uma dessas disciplinas. Os organizadores do presente livro compreendem a troca de experiências e a socialização de seus resultados como um ato de engajamento, vale dizer, um ato que ultrapassa largamente a compreensão das práticas acadêmicas como simples exercício burocrático, efetuadas principalmente em função das exigências endógenas da vida universitária. Ao permitirmos o acesso do leitor às pesquisas e reflexões aqui apresentadas em forma de livro, procuramos de alguma forma requalificar o trabalho acadêmico, adaptando-o às exigências mais amplas da vida social no Brasil e de sua população.
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Os organizadores.
Ano de lançamento | 2022 |
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Número de páginas | 271 |
ISBN | 978-65-5869-834-0 |
ISBN [e-book] | 978-65-5869-835-7 |
Organização | Daniele Gallindo Gonçalves, Edmundo Narracci Gasparini, Luiz Barros Montez, Miriam de Paiva Vieira |
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