Entre o direito à literatura e o direito à cidade: mediações das “Cidades Invisíveis” para a formação do leitor responsivo

Priscila de Souza Chisté

PREFÁCIO

Escrever é fácil.
Você começa com uma letra maiúscula
e termina com um ponto final.
No meio você coloca ideias.

Pablo Neruda

Antes de pensar, dizer e escrever algo específico do livro de Priscila de Souza Chisté – “Entre o direito à literatura e o direito à cidade: mediações das “Cidades Invisíveis” – preciso lembrar, aos leitores do livro, algo vital sobre os livros universais em geral, esses maços de folhas bem finas com letras formatando palavras em linhas uniformes, arquitetando frases prenhes de sentidos infinitos das nossas vidas e do mundo escrito – um registro mental das nossas vidas e dos múltiplos sentidos e mistérios sem começo e sem fim do universo. Examinando mais a fundo esta invenção inédita do livro pelos seres humanos, alguém já disse e escreveu que “o livro é como a roda, uma vez inventado, nunca mais será superado e acabado”. Sou fascinado pelas rodas e pelos livros: duas invenções perfeitas, insubstituíveis e inacabadas, uma vez inventadas nunca mais serão exterminadas. São vitais à existência humana. E sempre serão uteis e aperfeiçoadas. Nunca acabadas pela sua tecnologia e utilidade.

Dentre a multiplicidade e a infinitude de coisas e valores – ora harmoniosos, ora contraditórios e intrigantes – que os livros causam e produzem nos leitores, eu festejo o encanto e a alegria de lê-los. Amo os livros e as leituras que faço dos seus escritos. Procuro vivenciar o legado que Italo Calvino nos deixou:

[…] os livros modernos que mais admiramos nascem da confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão. Mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial (CALVINO, 2002, p. 131).

Na imaginação sem fronteiras e sem limites – sempre “leve como um pássaro” – Calvino encanta o leitor com a escrita sobre a escrita no livro:

[…] as visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto (CALVINO, 2002, p. 114).

Após esta breve abertura, o começo na acepção de Pablo Neruda, vou falar do presente livro. No meu horizonte dos sentidos de leitura, o livro de Priscila é um brinde – com multiplicidade de sabores – à literatura e à ciência, sempre celebrando a vida humana.

O presente livro é um diálogo do começo ao fim entre a autora e muitos pensadores, escritores, estudiosos críticos e leitores, nominados e referidos no livro. Em momentos contínuos, Priscila inspirou-se na imaginação sem fronteiras e sem limites – sempre “leve como um pássaro” – nos escritos estéticos-literários de Italo Calvino. Em outros momentos, também contínuos, a autora ancorou e arquitetou seus escritos nos argumentos e nas categorias conceituais na mais elevada e profunda consistência teórica de Bakhtin.

Por opção e escolha da autora, fazem parte deste diálogo muitos outros pensadores e escritores, já altamente conhecidos e lidos, com destaque de W. Benjamin, A. Cândido, D. Harvey, H. Lefebvre, K. Marx, T. Todorov, V. Volochinov, e muitos outros.

Ao realizar a pesquisa e escrever o presente livro, a autora se pergunta: “será que alcançamos nosso objetivo?” Ancorada em Bakhtin, ela mesma responde, visivelmente satisfeita e alentada:

[…] se demos conta de mostrar o vigor do livro “As Cidades Invisíveis” para favorecer as reflexões sobre a cidade, pensarmos sobre os seus problemas, rememorarmos a festa, a vida e os encontros que ocorrem na cidade, se demos conta de mostrar que a cidade não é só aquilo que ela aparenta ser, mas também aquilo que ela esconde, se demos conta de mostrar que respondemos pelos nossos atos na vida e que a arte pode nos estimular a pensar, repensar e a agir em busca de uma cidade justa, consideramos nossa tarefa cumprida. Cumprimos essa tarefa mais visualizamos a sua continuidade (p. 161).

A autora explicita com clareza e exatidão as relações entre a literatura e a cidade, com foco na análise do livro “As Cidades Invisíveis”, de Italo Calvino. O livro de Priscila é importante em seu todo, mas com destaque ao problema do diálogo entre a literatura e as cidades – uma combinação dos elementos da estética com os elementos das ciências sociais. Estabelece um elo fascinante da estética – espaço da literatura – com a ética – a vida nos espaços das cidades. Assim, temos um escrito de narrativas, análises e categorias das múltiplas relações entre a literatura e a cidade. Vale-se das categorias de análise de Calvino do livro “As Cidades Invisíveis”, e outros escritos, para imaginar e propor uma pedagogia para o “avanço na construção coletiva de uma educação pública transformadora”. E essa pedagogia pressupõe pensar, examinar, discutir e imaginar a cidade onde vivemos hoje, sem desconhecer e sem mutilar a memória da cidade que já foi, nem esquecer a imaginação da cidade que ainda será.

Neste exame da vida social real do dia a dia das nossas vidas, no espaço urbano – lugar onde habitamos, comemos, bebemos, trabalhamos, consumimos, resistimos, nos divertimos, estudamos, nos alegramos, nos estressamos, lutamos para uma vida pessoal e coletiva mais humana, mais justa e amorosa – Priscila propõe a leitura literária na escola e em casa, desde os tempos de criança até a alta longevidade, por ser um ato pedagógico responsivo. Quem lê, devagar e sem pressa, este livro fica embevecido de prazer, de esperança e de elevada lucidez. Priscila proclama a leitura na escola como formação do leitor e convence os leitores que a “leitura literária convida-nos a participar da experiência estética proporcionada pelo universo ficcional. A literatura, portanto, traduz a nossa humanidade e modifica nossa existência” (p. 35). Assim, o escrito amplia, alarga sem limites e sem fim os horizontes dos direitos à cidade e à literatura de todos os leitores.

A autora celebra os valores estéticos, éticos e sociais da literatura no caminho metodológico da dialética de Antônio Cândido: “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CÂNDIDO, 1995, p. 175). Essa perspectiva dialética, Priscila confirma e destaca nas obras de Italo Calvino, particularmente em “As Cidades Invisíveis” e “Seis Propostas para o Próximo Milênio”. Na verdade, Calvino sente e percebe que tudo na vida e no 18 universo é constituído e dividido em duas partes – ele mesmo se sentia dividido ao meio longitudinalmente – sempre em sentido oposto nas relações de contradição: Leveza-peso, rapidez-lentidão, exatidão-imprecisão, visibilidade-ocultação, multiplicidade-unicidade. Assim, uma metade não existe sem a outra metade contrária.

Estas qualidades calvinianas da literatura Priscila explicita na narrativa e na exposição das três cidades que analisa: Maurília e a memória da cidade; Leônia e a sedução do consumo; Berenice e a utopia. São três contos escolhidos pela Priscila do total de 55 contos, todos muito breves, do livro “As Cidades Invisíveis” de Calvino.

Março, 2021
José Kuiava

 

Ano de lançamento

2021

Autoria

Priscila de Souza Chisté

ISBN

978-65-5869-291-1

ISBN [e-book]

978-65-5869-316-1

Número de páginas

190

Formato