Estudos e pesquisas com o cotidiano da educação das infâncias em periferias urbanas

Heloisa Josiele Santos Carreiro, Maria Tereza Goudard Tavares

R$45.00

PREFÁCIO

Ana Lúcia Goulart de Faria

Que acham se delirarmos um pouquinho? Que acham se fixarmos nossos olhos mais além da infâmia? Para imaginarmos outro mundo possível. O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões. [ ] Assim como canta o pássaro sem saber que canta, e como brinca a criança sem saber que brinca… (Galeano, O direito ao delírio apud STEVAUX, 2012, p.58-9).

Dada a grande dificuldade que encontrei para escrever neste momento da nossa história o prefacio para esta arca do tesouro de resistência das crianças e professoras de educação infantil do Rio mostrando a produção de conhecimentos entre adultas professoras e as crianças e a produção das culturas infantis entre as crianças e entre crianças e as professoras, resolvi aceitar o convite do saudoso Galeano e delirar.

Então, ao estilo antropofágico, reuni fragmentos de pensadores/as e pesquisadores/as que pudessem mostrar melhor do que eu sozinha que este livro é também uma arma de combate que temos agora em mãos para enfrentar o desmonte da educação pública no nosso país em particular o impacto deste desmonte que visa interromper este “ensaio de humanidade” que se vem praticando na educação infantil, primeira etapa da educação básica. Milton Santos (documentário “Por uma outra globalização”, dirigido por Silvio Tendler) diz que ainda não existe humanidade, o que temos são ensaios de humanidade. Este livro organizado por Maria Tereza e Heloisa mostra como a educação infantil no Rio de Janeiro vem atuando, isso é, resistindo ao adultocentrismo e todas as formas de autoritarismo e às práticas (invisíveis?) de exclusão e propondo pedagogias emancipadoras afirmando diferenças e extinguindo desigualdades. De forma enérgica, rigorosa, consistente e densa os textos que compõe esta coletânea mostram que estamos a todo vapor no ensaio de humanidade mesmo que para isso tenhamos que, como diz Calvino, encontrar o que não é inferno dentro do inferno já que, ainda com Galeano, vamos lembrar que o

nosso pior inimigo é a inércia … que viver vale a pena… viver está muito, muito além das mesquinharias da realidade política onde se ganha ou se perde… E da realidade pessoal também: onde só se pode ‘ganhar’ ou ‘perder’ na vida. E isso importa pouco em relação a este outro mundo que te aguarda. Esse outro mundo possível. Que está na barriga deste! Vivemos num mundo infame, eu diria. Não incentiva muito… um mundo mal nascido. Mas existe um outro mundo na barriga deste, esperando. Que é um mundo diferente. Diferente e de parto complicado. Não é fácil seu nascimento. Mas com certeza pulsa no mundo que estamos. Existe um mundo que ‘pode ser’ pulsando neste mundo que ‘é’ (Galeano, 2011).

Assim, ao invés de acreditar no que está ocorrendo hoje em dia, o delírio me permite continuar o ensaio de humanidade e ver com clareza as questões acadêmicas que temos pela frente para garantir os direitos da infância. Nos pergunta Antonio Miguel (2014, p.864-5)

· Será que o nosso desejo de territorializar a infância não seria nada mais que o desejo de constituir dicotomicamente a criança como o habitante de um país estrangeiro que se opõe e opõe resistência aos habitantes do Território Científico do Mundo Adulto?

· Estaríamos nós constituindo a criança como o Outro Estrangeiro e Estranho – o mau selvagem, ateu, inferior, naturalmente corrupto, deficiente e deficitário, ou então, o bom selvagem rousseauniano, puro, naturalmente dotado e bem dotado, indefeso e corruptível, mas igualmente colonizáveis, cristianizáveis, aculturáveis, civilizáveis, escolarizáveis, liberalizáveis e ocidentalizáveis, e, em ambos os casos, escravizáveis e exploráveis pelo brilho sedutor do poder da mais valia do ouro estrangeiro proveniente dos estranhos territórios do Outro?

· Não estaríamos, com ciência da ciência, construindo ilegitimamente infâncias e pedagogias desenvolvimentistas, etapistas, progressivistas, darwinistas, cumulativistas, caricaturistas e capitalistas?

· Não estaríamos desfigurando infâncias ou configurando o não figurável? Poder da ciência da infância ou ciência do poder sobre a infância?

Este livro pode ser um livro que tenta escapar da ciência de poder sobre a infância mostrando realidades cariocas onde as crianças não vivenciam dentro das creches e pré-escolas uma

educação reprodutora que didatiza o lúdico, patologiza a infância e reduz a educação ao ensino. E como pretexto da democratização do conhecimento ensina-se um conteúdo conformista, sexista, racista, classista, adultocêntrico, homofóbico, dito neutro, para todas as crianças, sejam elas da elite, das camadas populares, negras, indígenas, brancas, trabalhadoras… (Faria, 2011, p.XIV).

Temos escapado deste modelo de escola, embora estejamos correndo o risco dela voltar a ser hegemônica, e assim continuamos em busca de uma educação emancipadora que significa a participação e resistência das crianças na construção da realidade social. Numa cidade do interior paulista Santiago (2014) pesquisando as crianças negras e não negras em creche pública constatou que

Os choros, as rebeldias e as brigas deixaram de ser compreendidas como “birras”, incômodos individualistas e passaram a significar movimentos de resistências e melodias de enfrentamento ao racismo, expressando que crianças negras pequenininhas percebem as práticas racistas presentes nas posturas pedagógicas adotadas pela educação infantil, deixando explícito que não aceitam enquadramentos que as fixam em posições subalternas na sociedade (p.3).

Se temos em nosso Brasil tantas contradições e aqui no livro vemos também um Rio de Janeiro que resiste propondo condições para a pequena infância participar, ser ouvida como poderemos negligenciar todas essas pedagogias e práticas culturais em curso? E voltar a práticas quando

dia após dia nega-se às crianças o direito de ser crianças. Os fatos, que zombam desse direito, ostentam seus ensinamentos na vida cotidiana. O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo. E os do meio, os que não são ricos nem pobres, conserva-os atados à mesa do televisor, para que aceitem desde cedo, como destino, a vida prisioneira. Muita magia e muita sorte têm as crianças que conseguem ser crianças. (Galeano, 2007, p.8).

Acho interessante ver como Laerte mostrou os bebês no tempo da discussão sobre a maioridade penal!

O Otimismo trazido por esta coletânea permite delirar vendo-o como arma de combate. Não somos nós as/os primeiras/os brasileiras/os a sofrer interrupção do ensaio de humanidade. Seguem uma frase do Darcy Ribeiro e a carta que Fúlvia Rosemberg escreveu para o então Ministro Fernando Haddad visando impedir que houvesse a interrupção do nosso ensaio de humanidade na educação infantil.

Disse o Darcy Ribeiro:

Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

Segue a carta da saudosa e querida Fúlvia:

Exmo Senhor Ministro da Educação Fernando Haddad

Meu nome é Fúlvia Rosemberg. Sou professora titular da PUC-SP onde coordeno o Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Idade (NEGRI), tendo orientado e levado à defesa mais de 50 teses/dissertações, a maior parte delas pesquisas sobre políticas para a infância brasileira. Nestes últimos 30 anos, venho atuando ininterruptamente como pesquisadora e ativista na área da educação infantil e dos direitos da criança pequena: no Congresso Constituinte para defender o artigo 208 da Constituição, no Congresso Nacional para discutir projetos de lei, no Ministério de Educação para participar da elaboração ou análise de projetos e programas todas as vezes que fui convidada. Minha meta é sustentar, lutar mesmo, por uma educação infantil brasileira democrática, isto é, de qualidade com equidade, principalmente para os bebês, via expansão de vagas e melhoria de nossas creches. Menciono luta porque, nestes anos, temos assistido, neste país, algumas propostas e práticas para a educação infantil, especialmente para as creches, devastadoras para as crianças pobres e seus pais, particularmente suas mães. Em sua administração no MEC, venho observando vários avanços no sentido de reverter, com louvor, práticas arcaicas: os bebês têm sido contemplados nas propostas curriculares, nos materiais didáticos, na alimentação escolar, na formação das professoras e gestoras, na construção de escolas de educação infantil com creche, no debate e em propostas sobre qualidade da educação infantil que, felizmente, têm se orientado para a avaliação da oferta e não das crianças usuárias. É com intensa apreensão que venho acompanhando a proposta da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República relativa à política educacional para as crianças pequenas, para os bebês, que, ao invés de manter e ampliar as iniciativas que vêm sendo adotadas pelo MEC (via COEDI) em sua gestão, pretende implementar as chamadas “modalidades de atenção” à criança em substituição e oferta em creche e introduzir procedimentos de avaliação de crianças pequenas (escala norte-americana de desenvolvimento infantil) criticados por muitos especialistas, gestores e ativistas brasileiros e estrangeiros. Há alguns anos atrás recorri ao mito de Sísifo como metáfora da política de educação infantil brasileira no período pós Constituição 1988 (tomei a liberdade de anexá-lo a esta mensagem)[1]: nossa maldição de reconstruir sempre desmandos administrativos. Sua administração, porém, vem colaborando em nosso esforço de levar a pedra ao cume da montanha, uma educação infantil brasileira de qualidade com equidade. Porém, exatamente neste momento em que V. SA. se prepara para deixar a liderança do MEC em função de sua candidatura às eleições municipais, identifico sinais da repetição do movimento arcaico de procurar manter a creche prisioneira de Sísifo. Vivemos, acadêmicos, gestores e ativistas da causa das crianças pequenas, da educação infantil, um momento de grande preocupação. Por isto, expresso meu apoio às iniciativas do MEC que estão contribuindo para a expansão e melhoria da qualidade das creches brasileiras. Além disso, reitero minha disposição para colaborar com o MEC nesta empreitada. Atenciosamente Fúlvia Rosemberg.

[1] Segue o link para o referido artigo www.proposicoes.fe.unicamp.br/…/40-artigos-rosembergf.pdf

Ano de lançamento

2018

ISBN

978-85-7993-490-2

Número de páginas

297

Organização

Heloisa Josiele Santos Carreiro, Maria Tereza Goudard Tavares

Formato