Gilberto Mendes: entrevistas acadêmicas

Fernando de Oliveira Magre, Rita de Cássia Domingues dos Santos

AVISO AOS NAVEGANTES

A primeira vez em que visitei Gilberto Mendes, fui tomada por um sentimento de expectativa e um certo desconforto. Sabia que se tratava de alguém de relevância na música internacional, figura vista de esguelha pela população local, conservadora – a despeito de um histórico de lutas sociais e do protagonismo nas então denominadas “vanguardas artísticas”.

Mas não poderia afirmar que aquela entrevista seria minha primeira aproximação – no sentido literal – com o compositor: costumava ver Gilberto acompanhado da Eliane, nos concertos do Centro de Expansão Cultural, que frequentava com meus pais, desde a infância. Pouco depois avistava o casal sob um guarda-sol, na praia do Boqueirão, silencioso e com olhar que divagava com algo longínquo. No meu mundo adolescente, Gilberto e Eliana eram “esquisitos”, dignos de nota, justamente por adotarem práticas fora do convencional daquela época. (Eu e minha amiga Cibele Geiger colecionávamos pessoas “esquisitas”). Alguns anos depois, via o casal chegar discretamente aos ensaios do Madrigal Ars Viva, do qual participei entre 1980-1983. Chegavam perto do horário do intervalo do cafezinho da dona Eunice e acompanhavam a parte final do ensaio. Acabado o ensaio, havia as reuniões da Diretoria. A essa altura, confesso que tinha uma imensa vontade de participar delas, pois já estava cursando Música na Universidade de São Paulo. Durante todo esse tempo, imaginava Gilberto como alguém provavelmente altivo e arrogante. Sei lá por quê, a palavra “vanguarda” me fazia associar a pessoas casmurras e de sensibilidade áspera…

Ao chegar à residência de Gilberto e Eliane, no apartamento da Rua Dr. Assis, fui tomada de surpresa com a gentileza, respeito e doçura com que fui recebida. Uma monografia a ser entregue como trabalho final de uma disciplina sobre o Barroco para o Mestrado em Comunicação e Semiótica, que cursava, ocorreu-me estudar os Motetos à Feição de Lobo de Mesquita e, a partir daí, fazer uma análise semiótica.

O que seria uma entrevista objetiva estendeu-se em uma conversa de mais de cinco horas: sobre música, Barroco, vanguarda, minha participação no Ars Viva, meus interesses de pesquisa, Santos. A cidade sempre foi parte de nossas conversas, pelo fato de termos optado por viver nela. A partir desse momento, fui me aproximando do casal e também do entorno, encabeçado pelo trio que compõe uma rima inusitada: Gil, Roberto, Gilberto (Gil Nuno Vaz, Roberto Martins e Gilberto Mendes). Por ocasião dos oitenta e cinco anos de Gilberto, passei a denominar esse petit committé de Schülappen.

Todas estas memórias que se apresentam como reminiscências têm, na verdade, se norteado por algo que gostaria de frisar ao leitor deste volume: o quanto a convivência com Gilberto Mendes foi importante para a minha formação intelectual, o direcionamento dos meus projetos de pesquisa. Mais que mestre, um amigo muito caro que faz muita falta! Foram muitas conversas sobretudo telefônicas, ao longo de anos. Alguns cartões postais enviados com referências imaginárias e parcialmente verídicas sobre locais que visitava, em congressos. Não tenho dúvida que experiências semelhantes tenham se passado com os pesquisadores, aqui presentes: arrisco a dizer que todos eles terão colhido muitos frutos do que plantaram e que o diálogo entusiasmado com o Gilberto terá estimulado muitos projetos.

Ao afirmar que Gilberto é múltiplo há de se considerar não apenas a sua obra, em si, original e complexa, mas também as extensões e redes que criou: ao incentivar estudantes e seus pares a explorarem inquietações a que nos conduziu, ao colocar em contato pessoas. Logo nas nossas primeiras conversas, ele perguntou: “Você conhece o Paulo Chagas?” Vim conhecê-lo em Imatra, na Finlândia, uns quinze anos após. O Márcio Bezerra, apenas de passagem. A Teresinha Prada, praticamente minha vizinha, tornou-se amiga próxima, apesar de ter ido morar longe. E também a Carla Delgado. Juntas passamos as tristes horas do velório, num chuvoso primeiro dia do ano.

Este livro constitui um material preciosíssimo não apenas para os estudiosos da obra do compositor, mas também sobre outras áreas do conhecimento. A erudição de Gilberto Mendes abrangia muitos campos do conhecimento, sobretudo das artes. Reiterando o que acabo de dizer, estou certa de que os pesquisadores que realizaram as entrevistas terão começado com uma leva de perguntas objetivas e saído deliciosamente perturbados com outras questões.

Post scriptum

Não poderia concluir sem declarar uma situação ocorrida no momento da minha saída. Gilberto me perguntou: “Vem cá! Esse negócio de semiótica não é o estudo dos sinais de trânsito?” – com o habitual meneio no ombro. Fiquei meio desconcertada, pois sabia que ele sabia o que era semiótica. Ao que me consta, Gilberto foi o pioneiro na docência da disciplina, justamente no curso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ninguém menos que Lucia Santaella foi aluna dele! Tempos depois, Gil Nuno Vaz, amigo comum, riu abertamente com que lhe acabara de dizer: “Ele estava tirando uma onda!”

São anedóticas essas situações, que descobrimos aos poucos por pessoas que passaram por experiências similares. Certo dia, a Eliane, de quem tenho a satisfação de ter como amiga, me disse que às vezes o Gilberto se comportava como um menino de onze anos. Não tenho dúvidas de que muitas destas entrevistas, presentes neste livro, foram perpassadas por experiências similares pelos entrevistadores…

Heloísa Duarte de A. Valente

Ano de lançamento

2022

Número de páginas

303

Organização

Fernando de Oliveira Magre, Rita de Cássia Domingues dos Santos

ISBN [e-book]

978-65-5869-840-1

Formato