Igreja e missão: Religiosos e ação política no Brasil

Wheriston Silva Neris

PREFÁCIO

A unidade na diversidade

Está errado quem pensa a Igreja católica como uma unidade. Erra também quem a toma como uma mesma instituição, igual em diferentes lugares do mundo. Se engana ainda aquele que acha que haveria uma Igreja brasileira, idêntica no sul, no oeste e no norte do País. E mais, não é sequer correto acreditar que numa mesma região ou estado federativo se tenha uma mesma instituição.

Isso por que, embora se trate de instituição altamente hierarquizada, assentada em regras, disciplinas, princípios e códigos escritos, que devem ser conhecidos e incorporados por seu corpo de profissionais, a Igreja Católica é, a rigor, um processo histórico. Um processo de progressiva difusão e estabilização de princípios e de códigos de conduta destinados a enquadrar a ação de indivíduos que, uma vez ingressados na instituição, submetem-se formalmente à obediência das regras institucionais.

Para forçar um pouco as imagens, diria que, ainda que seja uma grande empresa multinacional com quadros espalhados mundo afora, a Igreja tem pouco a ver com uma Coca Cola, com um McDonald’s ou com uma Philip Morris. Entre outros motivos, porque a Igreja não vende refrigerantes, lanches ou tabaco, mas algo muito mais complexo e intangível: salvação das almas, valores e sentido para a vida, para ser rápido nesse exemplo.

Mas também porque a Igreja é composta por estruturas infinitamente mais diversificadas: a hierarquia central romana e o alto clero sediado no Vaticano, as igrejas nacionais presentes em centenas de países com histórias e culturas as mais variadas, o gigantesco clero religioso formado por membros de congregações, ordens e institutos – sem dúvida, instituições dentro da instituição -, o corpo de leigos especializados e devotados a diferentes tarefas, e assim por diante. Depois poderia ainda falar da miríade de estruturas, postos, funções e circunscrições, que vão desde uma paróquia até a reitoria de uma universidade pontifícia, de uma capelania a um convento, de uma cúria episcopal a um serviço missionário no interior do interior.

Justamente, missão e interior. Duas noções bastante corriqueiras tanto no vocabulário prático do catolicismo quanto no estoque da produção acadêmica especializada. Mas que aqui, na pesquisa de Wheriston Neris, adquirem outro estatuto ao serem tomadas como parte de um objeto de análise peso-pesado: as relações entre o catolicismo missionário e o fenômeno da politização do papel sacerdotal e, por extensão, do próprio catolicismo. Dito de forma um pouco mais alargada, a pergunta fundamental que o autor faz é por que, em certas condições de exercício do ofício religioso, determinados membros da Igreja interpretam sua função em termos que extrapolam as fronteiras da religião e ganham significados, antes de tudo, políticos?

O leitor e a leitora encontrarão resposta ao longo do livro, é certo. Mas para isso serão também convidados a conhecer rico cardápio de outras questões indispensáveis à compreensão do fenômeno da politização religiosa, que está longe de ser simples. Entre essas questões, destaco melhor alguns pontos que em parte mencionei mais acima: a multidimensionalidade da Igreja Católica, cujas peças funcionam com lógicas por vezes conflitivas ou mesmo contraditórias; a diversidade da existência concreta da instituição de acordo com contextos históricos e culturais; a pluralidade das formas de interpretação das regras da instituição, portanto, dos modos de vivência subjetiva do métier e do exercício efetivo da autoridade religiosa, no caso, sacerdotal; os efeitos dos encontros de instituições e indivíduos vindos de longe com realidades socioculturais muito diferentes.

Dando carne, osso, rostos, características, paisagem e história ao fenômeno, o trabalho consegue reconstituir um quebra-cabeça de muitas peças. Ao final, é esse conjunto que torna inteligíveis as engrenagens da circulação internacional de quadros religiosos estrangeiros deslocados para uma região necessitada (em todos os sentidos) de um país da América Latina. É a dimensão transnacional da Igreja que aí emerge com clareza, mostrando a potência das redes institucionais que interligam diferentes atores e diferentes níveis do catolicismo em estratégias mais amplas de reação e fortalecimento da instituição (Igreja) e das instituições (congregações, institutos, grupos, movimentos).

Apenas o exame com lupa das experiências reais desse fenômeno, que não se restringe ao Brasil nem ao Maranhão, é capaz de explicar de que modo componentes tão díspares e distantes de uma mesma igreja se conectam e interagem. O atento enquadramento histórico – em várias escalas, é bom notar – das interações que se desenrolam fornece ao estudo lastro na captura das lógicas flexíveis de engajamento dos agentes religiosos, cujas mutações são tributárias dos encontros entre os componentes institucionais mencionados. Fica claro, afinal, que não há nenhum determinismo ou fatalismo no fato de alguns sacerdotes estrangeiros no interior do Maranhão, em certo momento histórico, terem passado a entender a ação religiosa como uma ação política.

O conjunto de resultados oferecidos pela pesquisa aqui apresentada presta, assim, muitos serviços. A leitores ainda pouco familiarizados com uma literatura científica sobre a Igreja – eventualmente adeptos ou profissionais do catolicismo – ele oferta rigorosa visão objetiva de um fenômeno facilmente reconhecível em seus sinais mais visíveis, como é a presença do clero estrangeiro no Brasil, a existência de uma fração politizada da Igreja, um catolicismo dito popular, o pastoralismo etc. Tais imagens e rótulos são examinados por dentro e iluminados por diferentes ângulos que escapam ao senso ordinário. A leitores já mais aclimatados com discussões sociológicas em torno da Igreja, o livro é exemplo de uma abordagem sociohistórica inovadora que se afasta de visões que enfocam ou a instituição ou os agentes religiosos. A conclusão mais forte da obra é, afinal de contas, que a(s) realidade(s) da instituição Igreja Católica somente pode ser compreendida pelas diferentes interações entre indivíduos e instituição. Não se pode ver direito a floresta sem olhar bem para suas árvores.

Número de páginas

493

ISBN [e-book]

978-65-5869-767-1

Autoria

Wheriston Silva Neris

Formato

Ano de lançamento

2022