Nossas vozes: diversidade de gênero e sexualidade, vida e educação
Organização: Patrícia Lima Martins Pederiva, Samuel Brito de Gusmão
PREFÁCIO
Na contemporaneidade as questões que envolvem gênero e sexualidade estão presentes em diversas discussões. Seja no campo acadêmico ou nos demais espaços cotidianos, a análise destes conteúdos está em pauta e tende a polarizar-se a depender de qual grupo examina a problemática. De um lado conseguimos perceber movimentos que, alinhados aos direitos humanos, defendem a liberdade de expressão dos corpos e a legitimação das relações afetivas e sexuais que transgridam as fronteiras consideradas convencionais. Por outro, encontram-se grupos fundamentalistas, aparelhados a discursos religiosos pouco inclusivos, que referendam o binarismo de gênero e atitudes intolerantes contra aquelas e aqueles que não se identificam pelas fronteiras muito bem demarcadas da heterossexualidade e da cisgeneridade. Estudar e produzir conhecimento neste terreno de disputa ideológica é o desafio assumido pelo aguerrido coletivo de autoras e autores que assinam os textos deste livro.
O título da obra ecoa como um manifesto: nossas vozes. Afinal que vozes são essas? É a voz de Dandara – travesti apedrejada e morta a tiros no Ceará em 2017. É a voz de Gisberta – transexual morta por um grupo de 14 rapazes, em 2006 em Portugal, depois de dias de agressões físicas e sexuais. É a voz de Alex – de 8 anos de idade que morreu em 2014 no Rio de Janeiro após ser espancado pelo pai e ter o fígado dilacerado por gostar de lavar louças e dança do ventre. São as vozes de diversos anônimos e anônimas que, ao longo da história da humanidade, não puderem ter a liberdade de expressarem seus afetos e sexualidades. Vozes que no decorrer de suas existências foram abafadas por discursos que ridicularizam e buscam a normatização. Vozes que cotidianamente são silenciadas pela violência de uma sociedade pouco acolhedora a diversidade. Apesar de muitas destas vozes serem interrompidas, muitas outras resistem em seu nome.
Os capítulos que compõem este livro fazem estas múltiplas vozes ecoarem por meio de seus textos-manifestos, e bradam em tom de denúncia ao defenderem que formas de socialização alicerçadas no preconceito engendram morte e cerceiam liberdades. Os escritos incluídos nesta coletânea, sem perder o rigor teórico-metodológico, materializam em narrativas as violações sofridas nos corpos de suas autoras e seus autores. Não se trata apenas de textos que analisam a experiência social a partir da externalidade, mas são escritos a partir de conteúdos relacionais que atravessam a vida dos seus autores, e autoras. Aqui, vida e teoria se fundem em busca de encontrar soluções para forjar uma outra sociabilidade de base democrática, inclusiva e acolhedora.
Discorrer sobre gênero e sexualidade e organizá-los enquanto conceitos científicos é algo relativamente novo na história da humanidade. As primeiras iniciativas de grande porte no Ocidente remetem-se ao Movimento Feminista, que se empenhou em denunciar as relações de poder assimétricas as quais as mulheres são submetidas para a manutenção do patriarcado. A supremacia masculina e a subordinação feminina foram denunciadas como vinculadas a um projeto de sociedade excludente que tem como princípio estruturante a dominação e exclusão de determinados corpos. Com o despontar dessas contatações, fortemente impregnadas pelos discursos dos movimentos sociais do século XX, os estudos universitários, principalmente os vinculados as ciências humanas, debruçaram-se em problematizar e analisar as relações sociais marcadas pela hierarquização do masculino em detrimento do feminino.
Nessa cinesia universitário-popular cunha-se o conceito de gênero como uma construção cultural sobre os corpos não vinculada de forma linear, definitiva e direta ao sexo biológico. O que se coloca em questão são as representações culturais sobre as características biológicas como produtoras das desigualdades e violências. Falar em gênero, portanto, é entendê-lo como da ordem das relações sociais. É compreender que as formas como lidamos com nossos corpos e sentimentos são circunscritos na cultura, e não guiados exclusivamente por determinações biológico-anatômicas. É conceber que as relações que subjugam, excluem e violentam são construídas no e pelo discurso de uma época e, por serem dessa ordem, não tem caráter perpétuo ou natural.
É desse lugar que as autoras e os autores desta obra analisam as problemáticas discorridas ao longo dos 13 capítulos. A leitura dos textos nos impulsiona a desnaturalizar as relações sociais que engendram exclusões, a partir da premissa de que somos seres produzidos e produtores nos, e dos processos históricos. Nesse interim, opressões das mais diversas ordens não são inatas e nem metafísicas, mas se originam no terreno da cultura, sendo constructos sociais passíveis de mudanças.
O lugar teórico deste livro é muito bem demarcado, pois parte do princípio de que identidades sexuais e de gênero estão interrelacionadas e são sempre construídas, caracterizando-se em formatos instáveis, e sendo passíveis de transformações ao longo do desenvolvimento humano: as pessoas não são um eterno continuum, com identidades fixas, mas constroem-se nas relações travadas no ambiente cultural. Portando, assumir a biologia como destino, como defende algumas interpretações, é negar a condição básica de que os humanos são seres criadores (de seus corpos, expressões, subjetividades) e não apenas reprodutores daquilo que lhes é dado ao nascer. Afinal, não somos máquinas programadas pelo código genético, mas artífices de nós mesmo por possuímos a capacidade de pensar e agir sobre a realidade. A proposta defendida nesta obra é que os corpos podem performar gêneros e sexualidades de forma diversa, autoral e livre do julgo biológico. A ideia de permanência e unidade identitária encontra-se frequentemente presa a uma visão inata, natural, biológica e hereditária sobre a sexualidade e o gênero — descontextualizada, portanto, dos parâmetros culturais, políticos e históricos.
Construir conhecimento científico através dessas inspirações, presente em todos os capítulos deste livro, é ter a esperança de que um outro modo de socialização é possível e necessário. É estabelecer estratégias de luta, por meio da ciência e dos movimentos sociais, para que os sujeitos sejam livres para expressar suas formas de serem e estarem no mundo. As autoras e autores não se silenciam e não consideram natural que mulheres transexuais sejam mortas com requinte de crueldade por performarem seus gêneros por outras vias, ou então que nascidos meninos sofram os efeitos perversos da homofobia por se aproximarem do que se considera como feminino. Neste livro a diversidade – as múltiplas formas de performarmos nossos corpos e afetos – é celebrada como marca constitutiva do humano.
Muitos dos escritos que integram esta coletânea utilizam os estudos de L. S. Vigotski (1896-1934) como referência. Este autor se mostra bastante potente para analisarmos as problemáticas dissertadas ao longo deste livro, pois buscou entender as bases psicológicas que compõem a essência do humano. Percorrendo o contrafluxo de sua época, retira os indivíduos do cativeiro biológico ao defender que nos constituímos a partir das interações sociais, no encontro alteritário com o outro, com o diverso.
Em um momento histórico marcado por guerras e aniquilamento de determinados grupos sociais, Vigotski defende que: “através dos outros constituímo-nos” (2000, p. 24). Esse princípio fundante de sua teoria reposiciona formas de socialização pautadas na exclusão e conclama a um fazer ético para com o outro – entendendo-o como primordial para a nossa constituição. Dentro desses pressupostos o outro, por mais diverso que seja, por mais destoante de mim que seja, é percebido como necessário, e como parte daquilo que sou.
A escolha de Vigotski para discutir sexualidade, conforme faz algumas das autoras e alguns dos autores, também parece acertada. Tradicionalmente os estudos modernos da Teoria HistóricoCultural não percebem a importância desta categoria para se discutir o processo de humanização. Os textos deste livro apoiados em Vigotski inauguram vias necessárias e urgentes dentro do fazer epistemológico da Teoria. Afinal, era do interesse do autor entender como a sexualidade “deixa de ser um instinto animal e se transforma em sentimento humano (VIGOTSKI, 2003, p. 95).
Vigotski também se mostra um teórico vanguardista no campo das discussões que envolvem a sexualidade e a educação. Em livro escrito em 1924 (VIGOTSKI, 2003) para professoras e professores, este problema é analisado com ares de modernidade. O autor denuncia que a falsa moral burguesa retirou a educação em sexualidade da escola, colocando-a como algo sujo e ruim: “essa ignorância do problema fez com que se lutasse contra todas as manifestações do sentimento sexual” (p.95). Mesmo passados quase 100 anos dessas ponderações de Vigotski, no Brasil contemporâneo ainda são atuais, pois a mobilização de extremadireita tenta imputar um discurso de pânico moral quando professoras e professores buscam fomentar na escola debates que envolvam gênero e sexualidade. Muito ainda temos que resistir, muito ainda temos que esperançar.
Apesar do abismo profundo em que o Brasil adentrou nos últimos anos, a obra Nossas Vozes surge como uma fagulha de esperança de que dias melhores virão. Dias em que o Estado brasileiro volte a instituir políticas públicas garantidoras da vida aos grupos marginalizados. Dias em que a escola assumirá o seu papel de formadora de cidadãos críticos. Dias em que sexualidade e gênero possam ser discutidos nas escolas sem represarias ou perseguições. Este livro demonstra a força de um grupo de estudiosas e estudiosos que não se calam perante as injustiças sociais e não se curvam diante de autoritarismos, pois acreditam, como entoou Chico Buarque, que apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Prof. Me. Fabrício Santos Dias de Abreu
Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
Centro Universitário Estácio de Brasília
Referências
VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, 71, 21–44, 2000.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica. Porto Alegre: ArtMed, 2003.
Ano de lançamento | 2022 |
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Número de páginas | 250 |
ISBN | 978-65-5869-745-9 |
ISBN [e-book] | 978-65-5869-746-6 |
Organização | Patrícia Lima Martins Pederiva, Samuel Brito de Gusmão |
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