Territórios liminares: violências, direitos e sensibilidades – Volume 1

Organização: Diana Araujo Pereira, Lívia Santos de Souza

APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPG-IELA) representa uma proposta inovadora de natureza interdisciplinar que, com pesquisas transnacionais, procura viabilizar a produção de saberes críticos, tanto em suas bases – em razão de um diversificado corpo permanente de pesquisadores –, como também no processo de circulação dos conhecimentos produzidos – resultante do movimento natural típico da zona de Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, na qual se localiza a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Cabe sublinhar ainda a presença, de caráter estrutural na UNILA, de discentes e docentes oriundos de vários países da América Latina e do Caribe.

Por sua implantação estratégica na UNILA, o PPG-IELA pressupõe, em seus fundamentos, uma problematização dos limites da noção de “nacional”, em favor do conceito de “comarcas culturais” transnacionais, ou mesmo em benefício da análise de semelhanças e diferenças político-econômicas ou culturais que caracterizam as diferentes regiões latino-americanas. Tais reconhecimentos valorizam a circulação de saberes em territórios definidos por biomas, cuja especificidade constitui o foco central das pesquisas. O PPG-IELA adota uma perspectiva interdisciplinar com múltiplos instrumentos de análise, e opera com categorias de observação de situações de vida de grupos e de comunidades, bem como de temáticas inovadoras, com o objetivo de produzir abordagens críticas para problemas socioculturais que emergem do tempo e espaço fronteiriços e, em maior medida, latino-americanos.

A área de concentração do PPG-IELA centra-se em Cultura e Sociedade da América Latina e conta com três linhas de pesquisa: Trânsitos Culturais; Práticas e Saberes; e Fronteiras, Diásporas e Mediações.

As perspectivas propostas pela linha de pesquisa Trânsitos Culturais privilegiam o estudo interdisciplinar de contatos, diálogos e processos intermidiáticos entre contextos artísticos, culturais e históricos através de perspectivas transculturais que ressaltam fenómenos e dinâmicas que transcendem múltiplas fronteiras nacionais, artísticas e midiáticas. Propõem-se pesquisas transversais e relacionais de diversas interações e manifestações artísticas e/ou narrativas (orais, literárias, poéticas, cinematográficas, audiovisuais e outras), bem como linguagens e suas confluências, culturas de imagem, produtos e processos culturais através da abordagem transcultural de dinâmicas de construção e circulação dos saberes, imaginários, identidades e memórias na América Latina e o Caribe. Os horizontes metodológicos propostos enfatizam fenômenos transnacionais e transculturais perceptíveis em processos e produtos artísticos (em diferentes dimensões de criação, circulação, percepção e leituras), em linguagens, narrativas e poéticas, nas mídias, nas práticas artísticas e culturais, bem como na construção de memórias em contextos e/ou períodos históricos e contemporâneos.

Na linha de pesquisa Práticas e Saberes, propõem-se estudos sobre a diversidade de práticas e saberes de populações, grupos e comunidades que integram a experiência histórica, artística e cultural da América Latina, em diferentes espaços e temporalidades. Dentre os métodos e técnicas de pesquisa consideram-se as fontes escritas, iconográficas, orais na investigação bibliográfica, etnográfica e de arquivo. Privilegia-se o estudo das seguintes problemáticas: modos de vida; configurações sociais; história das ideias e campos intelectuais e científicos; representações e concepções de mundo; e gestão dos patrimônios; arranjos e estratégias de coletivos e sujeitos.

A linha Fronteiras, Diásporas e Mediações se caracteriza pelo estudo transversal e relacional das práticas e processos de mediações socioculturais, inseridas nas esferas geopolíticas da América Latina e do Caribe, através da abordagem dos processos de construção e circulação dos saberes, imaginários, identidades e memórias que tomem as fronteiras como espaços territoriais, geográficos e simbólicos. Assim como pela observação e análise do campo das mediações entre os âmbitos da cultura, da estética, da esfera política e das práticas sociais; novas sociabilidades, fluxos e interculturalidade; pesquisas sobre as práticas descoloniais e o transbordamento dos limites dos estados-nação que reconfiguram narrativas e sujeitos em contextos de diáspora, populações indígenas e movimentos transnacionais.

Por conseguinte, as linhas de pesquisa do PPG-IELA visam reunir em diferentes suportes registros materiais referentes à memória coletiva e à história; analisar processos de circulação nos campos social, político e cultural com vistas ao questionamento das categorias e fundamentos que, tradicionalmente, constituíram os campos do saber; compreender práticas sociais que envolvam redes de memória e seus eventuais processos de transformação, fragmentação e descontinuidade.

O diálogo entre as áreas de Letras, Artes, História, Antropologia, Comunicação, Geografia e Filosofia, e disciplinas afins, tem como objetivo principal a atuação sobre os processos de produção e circulação do conhecimento, em sua articulação com as práticas e mobilidades sociais e culturais da América Latina.

Por ter sido o primeiro programa de pós-graduação aprovado pela CAPES na UNILA, o PPG-IELA tem um valor histórico inegável na construção das bases interdisciplinares e de internacionalização do projeto UNILA, assim como um valor social que deve ser ressaltado. Sua proposta busca registrar e compreender práticas sociais e culturais que emergem dos cenários significativos dos seus atores, colaborando com a construção de uma geopolítica do conhecimento diferenciada e acorde com as reais necessidades e demandas do continente.

Em março de 2014, o PPG-IELA iniciou suas atividades com a primeira turma (composta por dez estudantes, sendo cinco discentes do Brasil e cinco internacionais: Argentina, Paraguai e Colômbia) e vem se afirmando em um contexto trinacional, comprometido com o seu entorno regional, porém com o olhar crítico voltado para toda a América Latina e Caribe. Em 2020, o PPG-IELA já conta com 76 egressos(as): 48 Mestres brasileiros(as) e 28 Mestres internacionais, com isso contribuindo para o fortalecimento da missão institucional da UNILA, de cooperação solidária e integração latino-americana.

Atualmente o Programa conta com 43 estudantes ativos(as), orientados(as) por professores permanentes e colaboradores que formam o corpo docente do Programa. Assim, considerando o caráter interdisciplinar do PPG-IELA e a alocação de seus educadores e educandos nas três Linhas de Pesquisa que o compõem, neste volume destacam-se dez artigos, tecidos de maneira individual e em parceria entre docentes, ou entre docentes e discentes, referentes a pesquisas finalizadas ou ainda em curso na UNILA. Nosso objetivo é traçar um panorama dos trabalhos, com especial ênfase para a interlocução temática entre as linhas dispostas no Programa.

Neste volume, embora os temas trabalhados sejam bastante distintos, é possível observar a permanência de algumas linhas de força que nos parecem significativas para traçar reflexões sobre os Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos hoje: as reflexões sobre direitos humanos e sobre o papel social do fazer artístico.

No primeiro capítulo, “Campo de concentração ou colonização? – um diálogo interepistêmico entre paradigmas contemporâneos sobre direitos humanos”, Marcos de Jesus Oliveira parte de sua experiência docente na Unila para construir uma importante reflexão sobre dois paradigmas fundamentais para a compreensão de seu tema de pesquisa: o campo de concentração e a colonização. Articulando uma série de autores amplamente debatidos no campo das humanidades, como Agamben, Judith Butler, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Walter Mignolo e Achille Mbembe, o texto busca deslocar o debate de sua leitura mais tradicional para evidenciar a necessidade do diálogo interepistêmico voltado à compreensão mais ampla sobre os direitos humanos.

Seguindo com a temática dos direitos humanos, agora mais voltada para um caso concreto, o segundo capítulo, “Memoria en Colombia: Entre las resistencias y las iniciativas de paz” escrito por Mayra Alejandra Bernal Huertas e Angela Maria de Souza, trata da memória como ponto central para a compreensão da relação que se está construindo com a história da violência que marcou o século XX no país. Assim, dar visibilidade à memória das vítimas se torna um processo profundamente necessário para o estabelecimento de laços comunitários que permitam o próprio reestabelecimento da democracia. A partir de dois eventos específicos e seus desdobramentos posteriores, o holocausto de seis de novembro de 1984 e o encontro do dia 27 de agosto de 2020, no Parque de la Reconciliación, as autoras propõem uma articulação com a memória desde uma perspectiva cultural e étnico-racial.

Camila Viviane Lui de Sousa e Maria Inês Amarante, autoras do terceiro capítulo “Saúde mental, comunicação e gênero: o corpo feminino e a violência no cotidiano”, seguem pensando questões relacionadas ao universo dos direitos fundamentais, mas agora com um olhar voltado para o recorte de gênero. No texto, elaborado a partir da proposta pedagógica freiriana, e vinculado às experiências de mulheres que participaram de oficinas terapêuticoeducativas no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) de Foz do Iguaçu, as autoras alertam para a necessidade da construção de formas de tratamento de saúde mental que não se restrinjam à medicalização desses quadros.

Na sequência, Hugo Quinta e Andrea Ciacchi, apresentam o capítulo “Argentina em fins do século XIX e início do século XX: o campo intelectual na revista Criminalogia Moderna e sua relação com o projeto positivista”. No texto, são abordadas questões referentes à elaboração do campo intelectual argentino a partir de sua relação com o discurso. Tratando especificamente da criminologia nesse país, os autores pensam ainda o projeto de nação envolvido na construção dessa disciplina jurídica e o papel desempenhado pelo positivismo nesse contexto.

No quinto capítulo são exploradas questões relacionadas à educação a partir da região nordeste do Brasil. No texto intitulado “Alargar os horizontes: Uma análise sobre o Projeto Nosso Nordeste, Nosso Lugar de Fala”, os autores Jonas Mateus Ferreira Araujo e Angela Maria de Souza elaboram um mapa das estratégias de resistência construídas no bojo desse projeto educativo. Assim, adotando como metodologia a pesquisa-ação, o trabalho pensa a educação popular, considerando 109 experiências de resistência apresentadas em uma perspectiva que se vincula à noção de escrevivência, trabalhada por Conceição Evaristo.

O texto seguinte dá início à exploração de outro ponto fundamental para o presente volume: o papel sociocultural desenvolvido pelas linguagens artísticas na América Latina. Abre esse debate o capítulo escrito por Analía Chernavsky e Adrielly Oissa: “O canto do chamamé e a identidade musical do nordeste argentino”. No texto, as autoras abordam o chamamé como elemento constitutivo da identidade musical dessa região da Argentina, a partir da análise do comportamento vocal associado à execução do gênero. Trata-se de um trabalho que, mediante a conexão entre a história e os estudos de canto, reflete sobre a construção de identidades regionais.

Seguindo com o estudo sobre o canto, embora pensado desde a realidade colombiana, o capítulo seguinte “Cuidar cantando.

Sobre una ética del cuidado con registro cimarrón en San Basilio de Palenque”, escrito por Lucía Castillo Rincón e Angela Maria de Souza, explora a liderança espiritual exercida por mulheres que cantam bullerengue e lumbalú na região de San Basilio de Palenque.

Partindo de uma reflexão sobre as funções associadas ao cuidado, assumidas por essas mulheres, as autoras constroem relatos dos múltiplos lugares ocupados por mulheres negras na vida comunitária da região.

Saindo do território da música para explorar a literatura, no capítulo “Entre a América Latina e o Vasto Mundo: uma crítica à colonização das formas de crer e sentir desde o chão” os autores Lívia Santos de Souza e Anaxsuell Fernando da Silva abordam a obra da escritora Maria Valéria Rezende. Discutindo formas do crer a partir de um repertório que questiona as imposições coloniais para o tema, o texto reflete sobre como a literatura pode funcionar também como veículo de abordagem anticolonial da religião.

Nesse sentido, romances como Vasto Mundo, no qual Rezende apresenta um catolicismo popular, bastante afastado das diretrizes tradicionais do Vaticano, permitem que se leia o crer a partir de outras perspectivas.

No capítulo que segue “Memória, autonomia e identidade na construção do canal televisivo mapuche ‘Wall Kintun tv’”, de autoria de Estela Rocha de Ungaro e Laura Janaina Dias Amato, discute-se a criação desse que foi o primeiro canal televisivo organizado e executado por um povo originário, na Argentina, após a implantação da lei de meios, aprovada em 2009. O texto trata dessa experiência adotando como eixos dois aspectos: a relevância desse canal para a cultura mapuche e o papel por ele desempenhado como veículo fomentador de visibilidade para a voz desse povo, tantas vezes silenciada. Dessa forma, trata-se de uma reflexão que envolve elementos de distintos campos das humanidades e que levam a pensar a questão indígena na Argentina hoje.

No último capítulo, “Encontros nas margens: percursos urbanos, corpo e desejo na filmografia de Marcelo Caetano” o autor Fábio Allan Mendes Ramalho trabalha a relação entre espaço urbano, erotismo e desejo a partir da linguagem cinematográfica.

Enfatizando a cidade como espaço de múltiplas possibilidades e encontros, o texto explora as obras Bailão (2009), Na sua companhia (2011) e Corpo elétrico (2017). Busca, a partir de uma abordagem marcadamente interdisciplinar, discutir conceitos como o de margem, não apenas em sua acepção geográfica ou social, mas também considerando sua dimensão no campo das experiências práticas e subjetivas.

Em 2020, a UNILA celebra seus dez anos de fundação realizando um balanço de suas conquistas e desafios. Neste contexto, o PPG-IELA soma-se aos processos de autoavaliação coletivos, com o objetivo de qualificar a produção do programa, bem como seus valores e prioridades. Portanto, este volume agrega pesquisas individuais, em parceria entre docentes ou entre docentes e discentes, além de frutos de parcerias orientando(a)-orientador(a), em curso nas três Linhas de Pesquisa do PPG-IELA e vem fechar um ciclo de amadurecimento científico-acadêmico, fortalecendo seus princípios basilares: a interdisciplinaridade e a perspectiva crítica, latinoamericanista e intercultural do Programa.

Assim, em decorrência da pandemia, com a impossibilidade de viagens externas e de intercâmbios pessoais, o PPG-IELA decidiu investir em uma viagem interna, à sua própria história de configuração e crescimento. Convidamos nossos(as) leitores(as) a atravessar conosco um mapa latino-americano construído pelas diversas e distintas peças que o compõem. E, por que não, convidálos(as) a continuar, a escrever essa história aberta, inconclusa, criativa e móvel.

cantamos porque el sol nos reconocey porque el campo huele a primaveray porque en este tallo en aquel frutocada pregunta tiene su respuesta

cantamos porque llueve sobre el surcoy somos militantes de la viday porque no podemos ni queremosdejar que la canción se haga ceniza

Mario Benedetti (Canciones del más acá)

Diana Araujo Pereira,Lívia Santos de Souza,Laura Fortes e Simone Beatriz Cordeiro Ribeiro

Ano de lançamento

2020

Formato

ISBN

978-65-5869-083-2

ISBN [e-book]

978-65-5869-084-9

Número de páginas

223

Organização

Diana Araujo Pereira, Lívia Santos de Souza