Utopias e distopias na educação em tempos de pandemia

Nora Krawczyk, Selma Venco

DOI: 10.51795/9786558693611

PREFÁCIO

Narrativas em margens utópicas e distópicas

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
Coordenador geral dos programas de Pós-graduação
Faculdade de Educação
Unicamp

 

A escolha por abrir o Ciclo de Debates ‘Utopias e Distopias ne Educação em tempos de pandemia’ em conversações com o filme
Arábia (BRASIL, 2017) e os seus diretores, João Dumans e Affonso Uchoa, nasceu em uma das reuniões da comissão organizadora do
evento. Pareceu-nos provocativa a tensão entre utopias e distopias que o filme faz emergir em meio a temáticas que as narrativas
cinematográficas nos abrem à experiência entre imagens, sons e a palavra escrita.

Ganhador de cinco prêmios no Festival de Brasília de 2017, o longa metragem é, desde então, referência para importantes
discussões a respeito de temas diversos; vários deles atravessaram nosso Ciclo de Debates, criando um certo tipo de paisagem de
sensações que o filme espreita e as diferentes sessões do evento fizeram acontecer, em variações e diferenças.

A sinopse do filme é a seguinte: Em Ouro Preto, Minas Gerais, o jovem André encontra por acaso o diário de um operário
metalúrgico, Cristiano, que sofreu um acidente e por suas memórias embarca numa jornada pelas condições de vida de trabalhadores
marginalizados.

Foram muitos os atravessamentos do filme em mim. O sotaque mineiro, a paisagem da zona da mata mineira, região onde nasci, os
planos sequência demorados nas montanhas e na dilatação da passagem do tempo em lugares fílmicos, imaginados e memoriais. O
constante deslocamento para voltar a um ponto inicial. Esta ciclicidade das histórias de quem é ou está ‘no interior’ é fascinante
para se pensar sobre as ‘margens’. Obriga o interior a se deslocar do fundo e vir à superfície, e deixar-se marge-ar.

Dentre tantos aspectos potentes do filme, a fotografia ressooume brutal, pois desassossega, arranca-nos da posição de espectadores
às vidas narradas na tela. Em um plano-sequência que abre a produção, com André andando de bicicleta tendo as montanhas de
Minas Gerais ao fundo, num cenário rural e contemplativo, a ciclicidade da narrativa é rompida com a chegada do menino à
cidade, encarando a fábrica de alumínio que há no local.

A fotografia do filme luta, o tempo todo, contra a recomposição de um sentido totalitário de querer preencher toda
tela, todo espaço, e reclamar a ausência do clichê: o filme é distópico? É engajado socialmente? Retrata um país desigual sem
mudanças estruturais efetivas?

As narrativas vertem-se nas memórias de Cristiano, escritas em um caderno escolar, resultante de um conjunto de forças, advindas da sua
escolarização em um presídio, quando era jovem. Um caderno, as anotações de um operário contando fragmentos de sua vida.

Encantam-me as relações entre imagem, som e palavra escrita nos filmes. As cartas têm sido objetos primorosos para a apreciação
entre linguagens, que conferem condições a uma imagem acontecer no cinema. Também o são os cadernos. Reencontrei-os em Arábia,
ressoando pensamentos e afecções que me permitiram os encontros anteriores com Terra Sonâmbula (2007), de Teresa Prata, baseada
no livro de Mia Couto, e em ‘Onde fica a casa do meu amigo’ (1987), de Abbas Kiarostami. O comum entre eles é a capacidade de
a imagem sonhar outros mundos possíveis em que signos possam ser endereçados.

Em Arábia, quando André encontra o diário de Cristiano e as memórias povoam a tela, está é a imagem inaugural do filme. Porém
não é a sua primeira imagem. É muito raro que a imagem inaugural de um filme seja a primeira a se fazer visível aos olhos do espectador;
por vezes pode ser uma cortina voando na janela, que aparece ocasionalmente nos entremeios narrativos; ou uma flor encontrada
dentro de um caderno, entre folhas em branco, e que encerra um filme ou o reiniciaria.

Escrever cartas, diários, narrativas memoriais de vida sem ter o tempo para aguardar as respostas. O cinema, no caso dos filmes que
citei, e especialmente Arábia, endereça-nos tais signos. Pelas próprias características do cinema, as reações não lhe são enviadas como respostas; ou seja, não se trata de um modo mais usual com que o diálogo, a conversa ocorreria.

Arábia lança-nos em um universo da partilha dos signos sem a expectativa da resposta. É um filme escritor de cartas, cujos
destinatários podem ou não as responder. Nesse sentido, é um filme que revela as narrativas sobre a procura infrutífera pela utopia
perdida. E ressalta que o trabalho não é mais a forma de liberação dos sujeitos a sonhar outros modos de vida, dentro da sociedade
capitalista a que o filme faz referência.

É certo que não se constrói um discurso unitário sobre isso no filme. Assim como em Metropolis (Fritz Lang, 1928), a distopia é enovelada
com uma paisagem – no caso de Arábia, mais bucólica, enquanto em Metropolis são as cidades utópicas com seus arranha-céus.

Parece-me também importante destacar que o encontro, por um desconhecido, das memórias escritas por alguém, e o fato de o
filme Arábia não o salvar da morte, não trabalhar em uma perspectiva de sua redenção, é potencialmente violento para
pensarmos a educação. Ou seja, como pensar sem a estruturação das relações de poder e encontrar caminhos – com as imagens e as
palavras – da fuga da representação que se aninha nas identidades. E quem sabe, libertar o sujeito do homem, dar liberdade às diferenças emergirem.

As margens utópicas e distópicas dobram-se entre si e sobre as diferenças germinativas entre as imagens. Há alguns efeitos desse movimento. Destaco a desfiguração, que são as forças violentas que agem sobre uma ideia, um conceito, mas também sobre um corpo na pintura e no cinema. Em algumas dobras, mantém-se a figuração do sujeito como substrato para o campo de forças atuar.

O sujeito não poderia sobre-viver se já considerado, per si, essência ou essencial. Não é, portanto, para fazê-lo continuar
existindo como um direito virtuoso ou moralizante que o sonho utópico fenda o universo da distopia.

E, sim, afirmando tal negação da capacidade de uma humanidade perene, salvaguardada; um caos como parte constituinte de um ciclo, linhas abertas que vazam do interior à superfície, que (re)iniciam as narrativas, que povoam paisagens sonoras, imagéticas e da palavra escrita.

Ano de lançamento

2021

ISBN [e-book]

978-65-5869-361-1

Número de páginas

371

Organização

Nora Krawczyk, Selma Venco

Formato

DOI

10.51795/9786558693611