As escolhas léxico-estilísticas (culturemas) na obra de Lygia Fagundes Telles

Vicente de Paula da Silva Martins

AS CLÁSSICAS “DUAS PALAVRAS”

O primeiro contato que tive com a obra de Lygia Fagundes Telles foi através do livro Seminário dos Ratos (1977). Adquiri este livro de contos depois de vencer um concurso de contos e poesias no Colégio Militar de Fortaleza, em 1978, onde fiz o ensino fundamental e o ensino médio, no período de 1976-1982. Confesso que não foi fácil a leitura do livro de Lygia que, hoje, sei, soube bem explorar a contística de maneira fantástica. Contos como “As formigas”, “Herbarium”, “o x do problema” e “Seminário dos ratos” são, ainda hoje, quando os releio, temas instigantes para entender o fantástico e o insólito na narrativa lygiana, promovem o debate em sala de aula, sem deixar de dizer das inevitáveis digressões (políticas, antropológicas etc) que seus textos nos possibilitam, nos induzem na atividade leitora; ao longo da leitura dos contos da escritora paulista, quase sempre, relacionamos os temas da ficção a problemas sociais e individuais que inquietam a humanidade.

Quando ingressei, em 1983, no curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (UECE), em Fortaleza, achei que retomaria à leitura da obra lygiana. Não deu certo: ocupei-me, ao longo dos quatro anos, com disciplinas relacionadas à linguística e ao espanhol. Limitei-me, a partir de 1983, ao exercício do magistério nas escolas privadas de Fortaleza. Por isso, em 1989, atuando também no jornalismo cearense, concluí, na UECE, um curso de pós-graduação em Literatura Brasileira (lato sensu); no entanto, acabei me empolgando mais pela periodização literária do que por desvelar a obra lygiana. Depois, pensei assim: vou esperar o tempo certo. Aí, em 1994, já como professor do Curso de Letras da UVA, em Sobral, acreditei, em vão, que, em algum momento de minha atuação profissional, pudesse me tornar, definitivamente, leitor de Lygia Fagundes Telles; todavia, na correr dos anos, me envolvi com novas didáticas de ensino para a ministração das disciplinas na área linguística. Concluí mestrado em educação pela UFC e me entusiasmei muito por política educacional e, em especial, por legislação educacional. O certo é que o tempo passou.

Em 2019, como velho professor da disciplina Estilística do Português, o último componente pedagógico do projeto pedagógico de Letras, e com foco na Estilística Literária, tomei a decisão de estudar o léxico (“Estilística da Palavra”) na obra romanesca e contística de Lygia. Não foi uma tarefa fácil. Isso porque, em geral, nas atividades propostas para esta disciplina, inclino-me a ler e a fazer pesquisa lexical com o texto literário (romances) a partir de suas primeiras edições (mais fiéis à ortografia epocal); assim, levei, ao menos, seis meses, antes de ministrar a disciplina de Estilística, para garimpar, nos principais sebos do país, as edições mais antigas da escritora paulista. Saí ganhando no final. Afinal, tenho um conjunto de obras raras (e cativas) de Lygia na minha biblioteca particular (xeroco todos os livros para me sentir mais à vontade para fazer meus grifos durante a leitura).

De sebo a sebo, ano a ano, fui adquirindo, aos poucos, pacientemente, as principais obras de Lygia para estudo do léxico de suas narrativas. Biblioteca formada, considerei, para a pesquisa léxico-estilística, as obras publicadas na década 40 aos anos 90. De 1949, li O cacto vermelho. De 1958, Histórias do desencontro. Dos livros publicados na década de 60, selecionei para a pesquisa as seguintes obras: Histórias escolhidas (1961); Verão no Aquário (1964); e O jardim selvagem (1965). Dos livros da década de 70, separei, para minha pesquisa, as seguintes obras: Antes do baile verde (1970); As meninas (1973); Seminário dos Ratos (1977); e A estrutura da Bolha de Sabão (1978). Da década de 80, selecionei os seguintes títulos:A disciplina do Amor (1980); Mistérios: ficções (1981); Venha ver o pôr-do-sol & outros contos (1988); As horas Nuas (1989). E, da década de 90 e início dos anos 2000, considerei estas obras: A noite escura e mais eu (1995); Oito contos de Amor (1996); e Invenção e Memória (2000). A experiência leitora foi uma das mais ricas nas últimas três décadas.

Pois bem. Para o levantamento do léxico lygiano, tentei ao longo do ano de 2019, no Curso de Letras, estudar atentamente as obras acima indicadas. Leitura viável, mas, na prática, a pesquisa linguística nunca segue os passos de canguru, e sim, de tartaruga. Dizendo de outra maneira: não há como fazer pesquisa linguocultural com pressa vertiginosa. Falta fôlego para o pesquisador, sobretudo, o iniciante. Por essa razão, para fins de publicação, aqui, neste volume, separei apenas três das obras lidas e devidamente estudadas: Verão no Aquário (1964); este, romance; e O jardim selvagem (1965) e, claro, Seminário dos Ratos (1977), estes dois últimos, livros de contos. O Seminário dos Ratos é uma espécie de dívida comigo mesmo sobre a necessidade ontológica e epistemológica de me tornar um autêntico leitor de Lygia. Está longe, longe, de alcançar o desideratum leitor. Em meio à pandemia, não sei se encontro mais fôlego para publicar outros livros sobre a obra de Lygia.

Acontece, ainda, que a pesquisa léxico-estilística não é obra solitária. Não daria conta de levantar sozinho as lexias mais expressivas da narrativa lygiana. Faço isso, aqui e acolá, mas levo muito tempo e a leitura fica soluçante. Aos sessenta, os empreendimentos da pesquisa lexical já me desvanecem se os penso de forma autocrática. Por essa razão, envolvi, desde logo, meus alunos de Letras (todos do último semestre do Curso), a pretexto de promover a leitura no ambiente de formação inicial e, assim, criei não apenas estratégias de leitura compreensiva como também apresentei aos alunos procedimentos para a recolha de lexias simples, compostas e complexas; na verdade, orientei os alunos quanto ao proceder para capturar, ao longo da leitura literária, os culturemas, e, tudo isso, viável ao longo de um semestre de 2019. Trabalho árduo. Vaivém. No final, todos nós ganhamos com a leitura das obras de Lygia.

Reconhecendo o árduo trabalho de pesquisa iniciante, no campo léxico-estilística, achei merecido e justo, agora, aqui, mencionar e atribuir os devidos créditos pelo trabalho de leitura e de levantamento de léxico a quem de direito, os graduandos de Letras. Talvez, sem a participação ativa das equipes de alunos, não teria levado a cabo o desafio de ler e investigar o léxico de tantas obras de Lygia Fagundes Telles e, em curto tempo. Consegui, em um semestre, unir o útil ao agradável: ler, reler textos literários, pesquisar e instigar nos alunos novas pesquisas no campo linguístico-literário.

Para a leitura e o levantamento compartilhado de léxico lygiano, no romance Verão no Aquário ( [1964] 1998), contei com os seguintes colaboradores: Alice Silva da Costa, Ítala Maria Ripardo Neves, Lucas de Araújo Melo, Maria Josiane Moreira de Sampaio e Shirley Ramos Teixeira. Para o livro de contos O jardim selvagem (1965), foi imprescindível a colaboração de Beatriz Pinheiro Silva Guilherme, Charlan Araujo Nascimento, Kaique Matias Nascimento, Lailton Ferreira Souza e Luana Sousa Albuquerque. Para o livro de contos Seminário dos Ratos ([1977] 1998), foram nossos colaboradores: Amanda Iris Aragão Santos, Francisca Maiara Rodrigues Barros, Francisco Dalvan Linhares de Sousa e Maria Damires Oliveira Ricardo. Por essa razão, todos os colaboradores são considerados por mim como lídimos coautores; daí os créditos coautorais em cada um dos capítulos desta obra dedicados ao “dicionário” linguocultural lygiano.

Depois de quatro décadas da primeira leitura de Seminário dos Ratos e, mesmo após, recentemente, fazer a recolha do seu léxico linguoculturológico, fico ainda mais encantado com a obra e a expressividade lexical (morfológica também) de Lygia. Não há como fazer, em curto espaço de tempo, em condições sanitárias difíceis, uma pesquisa exaustiva nesse campo léxico-linguístico. Trata-se de uma obra marcadamente expedita para o debate político suscitado pelo atual contexto de pandemia, particularmente quando enfrentamos a ameaça de demolição da democracia brasileira. Agora me dei conta também que são muitas as possibilidades teóricas e de leituras abertas com esta obra e com outras mais de sua rica produção literária. Desconfio que nos próximos anos terei que, à guisa da menina-mulher, no conto Herbarium, todas as manhãs, pegar “o cesto” e me “embrenhar no bosque”, com inteira paixão, para descobrir uma “folha rara”. Como o ano de 1923 será um ano de celebração em virtude do centenário de nascimento de Lygia, até lá, gostaria de publicar, ao menos, duas obras sobre o léxico de dois dos seus livros de contos, a título de homenagem por suas mais de oito décadas dedicadas à literatura em língua portuguesa.

Por último, vale dizer o seguinte: na presente obra, trazemos os resumos das três obras em tela; os procedimentos para recolha de culturemas; e um dicionário de culturemas, isto é, um dicionário das escolhas léxico-estilísticas de Lygia que, em outro momento, simplesmente diria que todo a pesquisa desse porte resultaria sempre em um dicionário de língua e cultura; nesta experiência, também resultou em um dicionário linguocultural da narrativa lygiana, bem próximo do que fiz com obras literárias de Jorge Amado, J.J.Veiga e Amando Fontes, estudos anteriormente publicados pela Pedro & João, e sempre contando com o apoio, a amizade e o incentivo do linguista Valdemir Miotello, editor que tem publicado grandes títulos nas áreas educacional, linguística e cultural. Valeu, Miotello!

Vicente de Paula da Silva Martins Ano II da Pandemia da Covid-19

Ano de lançamento

2021

Autoria

Vicente de Paula da Silva Martins

ISBN [e-book]

978-65-5869-410-6

Número de páginas

236

Formato