Do futebol nacional ao pós-nacional: uma análise das produções literárias esportivas de Nelson Rodrigues e Eduardo Galeano

Cristina Allegretti

INTRODUÇÃO

Foi em 1994, na ocasião do tetracampeonato, que acompanhei, pela primeira vez, a Seleção Brasileira conquistar um título mundial. Embalada pela canção que afirmava “É a taça na raça, Brasil”, a população parecia unida como nunca e o país praticamente suspendia suas atividades em dias de partida. Naquela Copa, os jogadores entraram de mãos dadas em todos os jogos, simbolizando a união para chegar ao objetivo da conquista da taça. A partida final foi uma ocasião emocionante em que o campeão foi definido nos pênaltis, com a defesa do goleiro brasileiro Taffarel e o erro final do grande jogador italiano daquela geração, Roberto Baggio.

O erro de Baggio fez do Brasil tetracampeão, e o narrador Galvão Bueno, eufórico, já sem fôlego, eternizou, na Rede Globo de televisão, o momento: abraçado em Pelé, pulava e gritava: “É tetra, é tetra, é tetra…”. Ao fundo ouvia-se a música instrumental que tocava sempre que o piloto Ayrton Senna vencia na Fórmula 1. Senna morrera em maio daquele ano, tornando-se um símbolo do esporte brasileiro e comovendo o país. Os jogadores, comemorando a conquista, levaram ao campo uma faixa que transmitia a seguinte mensagem: “Senna… Aceleramos juntos, o tetra é nosso!”.

Toda essa conjuntura emocionou e comoveu o Brasil, de norte a sul. A morte de Senna trouxe àquela copa uma vibração diferente. E, além de vencer o campeonato mais importante do mundo, além de ser um momento de homenagem e recordação de Ayrton Senna, o Brasil atingia um marco que jamais outra seleção havia conquistado: o tetracampeonato. Era, em suma, unânime: tínhamos a melhor seleção de futebol do mundo.

Nesta ocasião, foi bem perceptível o quanto o futebol desencadeou um sentimento incomum no Brasil. A aura que pairava sobre o país era diferente; todos estavam orgulhosos com suas camisetas amarelas – naquele tempo, a propósito, a “amarelinha” não era associada a nenhum partido político, sendo possível seu uso sem receios. Em grande parte das residências havia uma bandeirinha do Brasil pendurada, demonstrando um patriotismo inigualável, e os carros também passeavam com suas bandeirinhas ao vento. Data desta época minha curiosidade por esse extraordinário fenômeno de identidade nacional que o futebol é capaz de proporcionar.

Na conjuntura do tetracampeonato eu era criança e, como grande parte das crianças, me comovi e emocionei com a conquista. Obviamente eu não tinha consciência de quanto uma vitória como esta poderia ser explorada pelo governo e pela mídia para a legitimação de um conceito de uma nação bem-sucedida. Aos poucos passei a ter esta consciência, na medida em que conhecia um pouco sobre construções históricas e tomava consciência da invenção de “mitos nacionais” por parte dos meios de comunicação – que, a propósito, não trabalham com imparcialidade. A partir deste entendimento, revisei minha percepção sobre o contexto e compreendi que aquela relação da conquista futebolística com a morte do Senna por parte da seleção e da mídia foi estrategicamente utilizada no objetivo de envolver as emoções coletivas, construindo um ideal de nação vencedora. Nesta conjuntura, o país experimentava há poucos anos a democracia através do voto direto e tentava sair de um contexto de anos de recessão econômica. Eram, ademais, tempos de concretização do plano real e estavam sendo colocadas em prática uma série de políticas neoliberais. Nesse sentido, uma comoção nacional proporcionada pelo futebol era extremamente conveniente, no intuito de transmitir uma ideia de unidade, otimismo e esperança em relação ao país.

No Ensino Médio tive contato, pela primeira vez, com os autores aqui estudados: o brasileiro Nelson Rodrigues (Brasil, 1912 – 1980), com a obra O beijo no Asfalto e o uruguaio Eduardo Galeano (Uruguai, 1940 – 2015), através do clássico Las venas abiertas de América Latina. Naquela época, eu não sabia que ambos eram apaixonados por futebol e que tinham se dedicado em escrever sobre o tema. Na faculdade de História li sobre a relação entre Nelson Rodrigues e a ditadura – e aqui, pela primeira vez, tive contato com suas crônicas esportivas. Aquele cenário de repressão ditatorial retratado por um escritor talentoso como Rodrigues muito me interessou e li alguns trabalhos sobre essa temática. Aos poucos, conheci também um pouco do que a academia produzia sobre o futebol – compreendendo que esta temática também era digna de ser estudada a nível acadêmico – e obtive a informação de que Galeano também havia escrito sobre o esporte. Ao ler seu livro destinado ao futebol, me surpreendi: havia algo em comum entre Rodrigues e Galeano. Como era possível? Rodrigues, que se autodenominava um reacionário, defendendo a ditadura e o modelo econômico capitalista e Galeano, crítico das ditaduras e denunciante do capitalismo, poderiam ter algo em comum? Eis o milagre do futebol: apaixonados por esse esporte, os autores vislumbravam suas seleções como um instrumento de constituição de identidade nacional e de reconhecimento mundial. A partir do futebol, ambos trataram de escrever acerca de questões alusivas à legitimidade de uma região e de um povo.

Estava, portanto, configurada a ideia: estudar um elemento característico da cultura latino-americana – o futebol – a partir de dois dos maiores nomes da nossa literatura. O Mestrado em Literatura Comparada da Universidade Federal da Integração Latino-Americana pareceu-me um programa perfeito para a proposta, já que a metodologia da literatura comparada era muito pertinente ao trabalho e, ademais, o projeto de intercâmbio cultural desta universidade relacionava-se absolutamente com o pensar as identidades e o lugar da América Latina no mundo.

Cumpre esclarecer que a Literatura Comparada enquanto metodologia aplicada na presente pesquisa surge não apenas como ferramenta de estudo comparativo entre dois autores, mas sobretudo como um método que nos permite transitar entre diversas disciplinas. Trata-se, portanto, de um trabalho interdisciplinar, no qual estão presentes áreas de conhecimento diversas – como letras, história, sociologia e antropologia. Destacamos, aqui, a ampliação da literatura comparada desde o seu surgimento, no séc. XIX: esta metodologia surge como uma ferramenta de relação entre duas literaturas diferentes, detectando o movimento de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando fronteiras literárias (CARVALHAL, 1991). Paulatinamente, a literatura comparada “deixa a de exercer essa função ‘internacionalista’ para converter-se em uma disciplina que põe em relação diferentes campos das Ciências Humanas” (CARVALHAL, 1991, p.1). Assim, além da comparação entre literaturas, a metodologia da Literatura Comparada oferece também a possibilidade de um diálogo entre diversas disciplinas. É este o foco do presente trabalho.

Nesse sentido, este livro está estruturado em 3 capítulos, conforme descrito a seguir: o primeiro capítulo destina-se a apresentar uma introdução aos autores. Abordaremos suas vidas, suas obras e a maneira como a temática do futebol aparece em suas produções, traçando semelhanças e divergências. Falaremos sobre as obras que serão abordadas e, por fim, traremos uma breve revisão bibliográfica sobre os estudos que se propuseram a analisar as obras de Rodrigues e Galeano. No segundo capítulo, faremos uma discussão sobre os autores e os gêneros literários, realizando uma reflexão literária sobre as produções futebolísticas selecionadas e os gêneros adotados pelos autores. Ademais, abordaremos o futebol como um campo de estudos nas ciências humanas, buscando compreender o histórico do futebol na América Latina e os motivos pelos quais este esporte se tornou tão popular na região. Importa mencionar que tanto a reflexão acerca dos gêneros quanto o fenômeno da popularidade do futebol relacionam-se diretamente com a conjuntura do século: o contexto de urbanização, o acirramento do capitalismo, a expansão da imprensa e a eletrificação dos espaços conecta-se com o advento dos gêneros literários estudados e com a popularização do futebol.

O terceiro capítulo, cuja proposta é a de analisar a relação entre identidade nacional e o futebol na produção dos autores, está dividido em 3 seções principais: na primeira, discutimos como o futebol é utilizado como elemento para constituir uma ideia de nação, trazendo ao debate a teoria acerca das Comunidades Imaginadas, de Benedict Anderson. Também consideramos a literatura e o futebol como um dispositivo – conforme teoria de Giorgio Agamben – que permite a subversão da lógica econômica vigente, segundo a qual os países subdesenvolvidos são colocados em uma categoria de subdesenvolvimento e inferioridade. A segunda seção contém uma discussão acerca da identidade e alteridade, compreendendo que a identidade é sempre uma construção efetuada a partir do outro, e esta característica se faz presente nas produções dos autores. Finalizando o capítulo, realizamos uma discussão sobre os sinais da fragmentação das identidades: as produções aqui analisadas também prenunciam os sinais de um novo contexto, caracterizado pelo deslocamento do futebol de um campo identitário para um campo mercadológico. Relacionamos este fenômeno à fragmentação das identidades, que, na teoria de Stuart Hall e Zygmunt Bauman, descentra o sujeito e diagnostica a instabilidade e a conflitividade das identidades nacionais.

Ano de lançamento

2022

Autoria

Cristina Allegretti

Número de páginas

144

ISBN

978-65-5869-856-2

ISBN [e-book]

978-65-5869-857-9

Formato