Currículo, gestão e oferta da educação básica brasileira: incidência de atores privados nos sistemas estaduais das regiões Nordeste e Sudeste (2005-2018). Coleção Estudos sobre a privatização no Brasil. Vol 3.

Organização: Regiane Helena Bertagna, Selma Venco, Teise Garcia

DOI: 10.51795/9786558693499

PREFÁCIO

O direito humano à educação e as obrigações públicas emanadas da Constituição Federal de 1988 no que tange a e este direito social de todas e todos os brasileiros têm sido permanentemente ameaçados – sobretudo a partir da onda neoliberal dos anos 1980/90 – pela pressão “privatista”. Essa pressão que abrange, tal como nos é apresentada no livro “Currículo, gestão e oferta da educação brasileira: Incidência dos atores privados nos sistemas estaduais das Regiões Norte, CentroOeste, Sul e Distrito Federal (2005-2018)”, volume 2, e Currículo, gestão e oferta da educação brasileira: Incidência dos atores privados nos sistemas estaduais das Regiões Nordeste e Sudeste (2005-2018)”, volume 3, tem aplicação e impacto direto na qualidade e no acesso da população ao seu direito, retratada na obra em toda a sua profundidade e abrangência.

E não se trata de retórica: os volumes têm o mérito de sistematizar e analisar, seriamente, dados das diversas regiões e estados do Brasil a aplicação concreta dessas medidas e os seus impactos. Nesse sentido, os dois volumes organizados pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (GREPPE), são livros que ajudam a entender a dimensão do fenômeno e do problema “no território” e elucida os desafios existentes em relação à gestão pública do ensino, único caminho para o pleno usufrutuo do direito humano à educação.

A “pressão privatista” acontece de múltiplas formas e tem sido, nos últimos anos, largamente teorizada, mas também objeto de narrativas consistentes e campanhas de grande parte da sociedade civil e dos movimentos no mundo. O diagnóstico sobre a “captura corporativa”, ou a “privatização da democracia” tem ganhado expressão nos debates atuais, junto da denúncia da “paralelização” do sistema multilateral que aos poucos deixa de ser o âmbito no que operam só estados e está se tornando um espaço 11 “multistakeholder” (de “múltiplas partes interessadas”) consagrando o poder do setor privado na tomada de decisões.

Trata-se de uma avançada em múltiplas frentes. Os atores privados atuam sobre governos e, logo, nos Estados e nas políticas públicas. Em geral, nos países ricos esses atores têm maior espaço e, aliados com os seus governos, influenciam os debates internacionais sobre quase todos os grandes temas; e, para nossa preocupação, questões como saúde, educação, alimentação, energia, meio ambiente têm sido assediados fortemente pelo setor privado, que enxerga neles boas oportunidades de negócios. Essa influência gera padrões (standards) que guiam e orientam as políticas públicas “certas” (muitas vezes são chamadas de “modernas” e/ou “eficientes”) para combater os problemas “certos” (ou seja, os problemas que eles enxergam como problemas). Decidem também o destino da cooperação internacional e do financiamento dos bancos internacionais de desenvolvimento e as condições que devem ser adotadas como parte desses empréstimos. Tudo isso com a ajuda de um arcabouço geral de teorias e pesquisas muitas delas financiadas pelas universidades, fundações e outros centros de pesquisa que dependem do apoio das empresas, constroem um “senso comum” no qual diversas formas de privatizar tornam-se não uma opção, mas uma decisão natural. Ou seja, o alargamento do mercado, do lucro, é transformado no caminho normal para o Estado cumprir com a obrigação de garantir acesso à uma educação de qualidade para todos. Obviamente isso não é assim, como é demonstrado nos diversos capítulos desse belo livro.

Na área da educação não é diferente. O primeiro passo sempre é a cooptação de governos e mentes fazendo com que os grandes fóruns internacionais debatam a agenda que interessa ao setor privado, ou que os temas da agenda pública sejam debatidos trazendo na solução os interesses do setor privado que via o bloqueio de medidas que não os obrigam, ou a promoção das que os beneficiam, acabam sempre protegendo os seus lucros. A consagração desse viés é a adoção do Objetivo de Desenvolvimento 12 Sustentável 4 (ODS), sobre educação, combinado com o 17º objetivo sobre “implementação” que inclui a colaboração com o setor privado como a forma adequada para cumprir com as metas.

Atores privados expressivos, tais como a Coalizão Global de Empresas para a Educação (Global Business Coalition for Education (GBCE), que foi criada e liderada pelo ex-Primeiro Ministro da Inglaterra, Gordon Brown, e cujo papel é descrito de forma eloquente por Vernor Muñoz[1] (2020) em relação ao ODS 4, e que a enxerga como uma “corrida para o ouro” em termos das oportunidade de negócios que a implementação da ODS 4 significa para empresas, que almejam abocanhar uma parcela importante dos investimentos públicos orientados pela consecução do objetivo dedicado à educação.

Mais recentemente, e sobretudo a partir da crise global de 2008, o setor privado se debruçou na elaboração de um tipo de governança global no qual se colocam no centro. Segundo os planos, por exemplo, do Fórum Econômico Global, o mundo precisa de uma Iniciativa de Redesenho Global (Global redesign initiative, 2010) na qual o formato multistakeholder passa a ser um jeito de consultar os atores a serem, eles mesmos, uma forma de governo dos assuntos globais. Há pouco tempo, no contexto da crise da saúde provocada pela pandemia da Covid 19, o nome do redesenho mudou para “Great Reset”, ou seja, uma reconfiguração global da governança com maior protagonismo – sim, mais ainda – do setor empresarial. As fórmulas multistakeholder não são novas, a novidade é que elas estão se consolidando como a forma natural de gerir os temas internacionais, paralelizando com estruturas consagradas, tais como: UNESCO, FAO, OMS e outras lideradas por Estados. O paradoxo é que as lideranças dessas instituições, muitas delas sucateadas pela falta de financiamento dos EstadosMembros, são, em muitos casos, as impulsionadoras dos arranjos “multipartes”. Em 2019, por exemplo, o Secretário Geral da ONU assinou acordo de parceria estratégica com o Fórum Econômico Mundial, para, entre outras coisas, ajudar a cumprir os ODS. Mas desde então, José Guterres, tem promovido uma nova onda de paralelização que quebra com o status quo do multilateralismo, atropelando espaços ou processos legítimos e consolidados de gestão, como o sistema FAO em Roma, que agora concorrerá com a Cúpula dos Sistemas Alimentares, organizada nos moldes e interesses dos grandes atores privados do setor de produção de alimentos do mundo, incluindo a Fundação Bill e Melinda Gates, muito contestada pelas organizações e movimentos sociais integrantes do Comité de Segurança Alimentar do Mundo. Ou a proposta de um Grupo Multistakeholder para a governança global da Internet, como consta no mapa de rota que submeteu para consulta recentemente, e atropela o processo de discussão da internet iniciado pelos Estados em 2006 no âmbito da ONU, o Fórum de Governança Internet, é mais um exemplo dessa tendência impulsionada desde o centro do sistema Multilateral e contestada pela sociedade civil[2].

Nesse contexto, é impossível pensar que nações e os entes subnacionais (estados e municípios), consigam lidar com a tremenda pressão que desce via todos esses canais, em meio ao problema constante da falta de financiamento público na ponta, como é descrito nos capítulos do livro. E é por isso que a grande tarefa dos defensores do ensino público e do direito à educação é se esforçar neste caminho de mostrar os impactos de decisões sobre políticas e padrões no nível internacional e contestar nesse nível, também, o embate das corporações (fundos, empresas, bancos, fundações etc.) em cima da governança multilateral. Nesse sentido, a tarefa fundamental hoje posta aos atores – a exemplo da Campanha Global pelo Direito à Educação, a Internacional da Educação -, junto a outros setores sensíveis para a população e o planeta (saúde, meio ambiente, trabalho) é necessária para dar uma chance, em um mundo em transformação no qual a educação terá – como em outros momentos de transição do paradigma econômico – um papel central, para recuperar o papel do Estado na garantia do direito à educação e do bem comum do conhecimento.

Boa leitura!

Gonzalo Berrón Diretor de Projetos
Fundação Friedrich Ebert – Brasil

Notas de rodapé

[1] NORRAG Special Issue 05 (NSI 05), “Domestic Financing: Tax and Education”, Geneva, 2020

[2] https://justnetcoalition.org/big-tech-governing-big-tech.pdf

Ano de lançamento

2021

ISBN [e-book]

978-65-5869-349-9

Número de páginas

403

Organização

Regiane Helena Bertagna, Selma Venco, Teise Garcia

Formato