Luzia-homem: dicionário de cultura linguística

Autoria: Vicente de Paula da Silva Martins

AS CLÁSSICAS “DUAS PALAVRAS”

A ciência explica nossa capacidade de ler. Temos o que Stanislas Dehaene, em seu Os Neurônicos da Leitura, chama de “cérebro da leitura”. O homem aprende a ler com seu cérebro. Depois que conhecemos os rudimentos da língua materna e a literatura infantil na pré-escola, ingressamos compulsoriamente nos anos iniciais do ensino fundamental e a escola formal, a partir daí, passa a ser um importante meio de acesso ao sistema de escrita e o essencial neste nível de início do processo de alfabetização em leitura. É assim que passamos a ter o “cérebro do leitor”. Todo esse meu discurso neurocognitivo é para salientar que a literatura povoa minha cabeça desde criança e o léxico do romance Luzia-Homem (LH), de Domingos Olympio, quarenta anos depois que tive o primeiro contato com a obra, continua me fascinando enormemente.

Há quatro décadas não conhecia nada de Sobral, cidade a 220 km de Fortaleza. A escola me indicou a leitura de LH e, pela primeira vez, tive uma noção de tempo e espaço de Sobral, cidade situada na mesorregião noroeste do Estado do Ceará. No campo da literatura, nada sabia também do conceito de verossimilhança (ligação entre fatos e ideias numa obra literária). O léxico me ajudou a entender mais sobre as cidades do semiárido, os povos e as suas culturas telúricas. Nunca havia associado, por exemplo, “O morro do Curral do Açougue”, que aparece no primeiro parágrafo de LH, local onde seria construída a Penitenciária de Sobral, com o atual Mercado Público Chagas Barreto, no centro da cidade, fortemente descrito pelo romancista: “Escorchado, indigente de arvoredo, o comoro enegrecido pelo sangue de reses sem conto, deixara de ser o sítio sinistro do matadouro e a pousada predilecta de bandos de urubús-tingas e camirangas vorazes”.

Depois da primeira leitura de LH, percebi, sem qualquer instrução escolar, as relações explícitas (léxico) e implícitas (literatura da seca) da obra com um conjunto de outros romance epocais (por exemplo, os romances de 30). O que observei como leitor literário, chamo hoje, na condição de linguista, de intextualidade, e após a leitura de Julia Khristiva, em sua História da Linguagem, vi o quanto a escritura literária dissemina textos anteriores, que são os textos que configuraram os esquemas cognitivos dos autores durante a produção do romance. A hipótese da intertextualidade como base da escritura romanesca é defendida por Roland Barhes em seu Rumor das línguas. Enfim, o que os teóricos chamam de intertextualidade ou transtextaulidade, atualmente, como um linguista que aproxima língua e cultura, chamo simplesmente de alusão.

Para dar um outro exemplo bem concreto do trabalho de interface linguística e literatura que venho desenvolvendo ao longo de três décadas, destacarei alguns pontos de minhas antigas anotações sobre o primeiro capítulo de LH. O enredo começa com o narrador descrevendo as “legiões de operários construindo a penitenciaria de Sobral”. Em determinado trecho, o narrador faz uma referência à “obra cyclopica”, da qual restava apenas, como “lugubre vestigio, o moirão ligeiramente inclinado, adelgaçado no centro, pollido pelo continuo attrito das cordas de laçar as victimas, que a elle eram arrastadas aos empuchões, bufando, resistindo, ou entregando, resignadas e mansas, o pescoço á faca do magarefe.” Cyclópica? Eis-me, então, mergulhado na mitologia grega.

A partir da expressão “obra cyclopica”, que me encanta até hoje, fui, primariamente, ao dicionário geral para melhor definir o adjetivo “cyclopica”, relativo aos cíclopes. O emprego do adjetivo “cyclopica” qualificando o substantivo obra, passou a ser uma curiosidade etimológica que logo despertou em minhas lídimas digressões ou investigações filológicas para desvelar as escolhas léxico-estilísticas do autor, estilo impressionista para descrever expressivamente a construção da cadeia: “Os mais fracos, debilitados pela edade ou pelo soffrimento, carregavam areia e agua; aquelles que não supportavam mais a fadiga de andar amolleciam cipós para amarradio de andaimes; outros menos escarvados amassavam cal; os moços ainda robustos, homens de rija tempera, superiores ás inclemencias, sobrios e valentes, reluziam de suor britando pedra, guindando material aos pedreiros, ou conduzindo ás costas, de longe, das mattas do sobpé da serra, grossos madeiros enfeitados de palmas virentes, de ramos de pereiro de um verde fresco e brilhante, em festivo contraste com o sitio resequido e desolado. E davam conta da tarefa, suave ou rude, uns gemendo, outros cantando álacres, numa expansão de allivio, de esperança renascida, velhas canções, piedosas trovas inolvidaveis, ou contemplando com tristeza nostalgica, o ceu´ impassivel, sempre limpido e azul, deslumbrante de luz.”

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Ano de lançamento

2021

Autoria

Vicente de Paula da Silva Martins

ISBN

978-65-5869-453-3

ISBN [e-book]

978-65-5869-454-0

Número de páginas

240

Formato