Análise dialógica do discurso em múltiplas esferas da criação humana

Elayne Gonçalves Silva, João Batista Costa Gonçalves, José Alberto Ponciano Filho

APRESENTAÇÃO

Este livro, escrito a muitas mãos e povoado por vozes diversificadas, é um dos resultados dos investimentos intelectuais – e porque não dizer, afetivos – dos participantes do Grupo de Estudos Bakhtinianos do Ceará (GEBACE), da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Sob a coordenação do Prof. Dr. João Batista Costa Gonçalves, orientador de numerosas pesquisas fundamentadas no pensamento do Círculo de Bakhtin, tanto na graduação do curso de Letras quanto na pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado) em Linguística, o GEBACE é constituído por estudiosos interessados em compreender melhor as propostas bakhtinianas para os estudos críticos da linguagem e do discurso. Nosso grupo realiza encontros quinzenais, nos quais discutimos textos redigidos tanto pelos integrantes do Círculo quanto por seus interlocutores e intérpretes contemporâneos, segundo um cronograma previamente estabelecido e tornado público, além de buscar promover com regularidade eventos sobre os estudos dialógicos do discurso para a comunidade acadêmica.

Enquanto pensávamos numa forma pertinente de organizar essa publicação, tendo em mente a pluralidade de temas tratados nela, uma das noções componentes da teoria do Círculo bakhtiniano do discurso nos serviu como guia: a de esfera – ou campo – da comunicação discursiva ou esfera ideológica[1].

No célebre ensaio Os gêneros do discurso, provavelmente o texto assinado por Bakhtin (2011)[2] mais conhecido no Brasil, o pensador russo assinala que o uso da linguagem, que se dá por meio da relação dialógica entre enunciados, é uma característica compartilhada pelas diversas esferas da atividade humana. Por extensão, sendo “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 262, grifos do autor), os gêneros do discurso também estão associados às múltiplas esferas da atividade humana (BAKHTIN, 2011). Com base na abordagem de Bakhtin e de seu Círculo, Sheila Grillo (2010, p. 143)[3], em Esfera e campo, um dos capítulos da coletânea Bakhtin: outros conceitos-chave, organizada por Beth Brait, afirma que a esfera “é compreendida como um nível de coerções que […] constitui as produções ideológicas, segundo a lógica particular de cada esfera/campo”.

Já na obra seminal Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, Volóchinov (2017, p. 94)[4] detalha o conceito nos seguintes termos:

No interior do próprio campo dos signos, isto é, no interior da esfera ideológica, há profundas diferenças, pois fazem parte dela a imagem artística, o símbolo religioso, a fórmula científica, a norma jurídica e assim por diante. Cada campo da criação ideológica possui seu próprio modo de se orientar na realidade, e a refrata a seu modo. Cada campo possui sua função específica na unidade da vida social. Entretanto, o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos (VOLÓCHINOV, 2017, p. 94, grifos do autor).

As esferas da produção ideológica coincidem, por conseguinte, com o domínio semiótico de que fazem parte. Cada esfera possui, portanto, sua maneira particular de interpretar a realidade social, conferindo-lhe sentido. Como ressalta Benedita Sipriano (2019, p. 113)[5] em sua tese, Popular e tradição na esfera artístico-musical: uma análise dialógica sobre heterodiscurso e processos de construção de sentidos a partir da obra de João do Vale:

a linguagem […] é o elemento em comum ao qual se ligam todos os campos/esferas da atividade humana, as quais possuem especificidades construídas no processo de interação verbal (SIPRIANO, 2019, p. 113).

Volóchinov (2017), na observação supracitada, dá-nos a ver (co)existência de uma miríade de esferas da comunicação discursiva. O modo como esse livro foi dividido buscou espelhar tal caráter múltiplo delas. Tendo em mente essa ideia, organizamolo segundo esta divisão: parte 1 – Análise dialógica do discurso na esfera religiosa; parte 2 – Análise dialógica do discurso na esfera artística; parte 3 – Análise dialógica do discurso na esfera midiática e, finalmente, parte 4 – Análise dialógica do discurso na esfera filosófica.

Dessa forma, os enunciados pertencentes à esfera religiosa examinados nos capítulos que constituem a primeira parte do livro são: o primeiro capítulo do Evangelho de Mateus; o vídeo Transformação, do coletivo Porta dos Fundos; um texto de Danilo Fernandes veiculado no blog Genizah e a celebração ocarense A Festa das Almas.

Já os materiais relacionados à esfera artística investigados nos textos que integram a segunda parte do livro consistem: no filme de animação Valente; na obra literária Os verdes abutre da colina, de José Alcides Pinto; numa fotografia da exposição Inside Out e numa articulação entre o cinema, os gêneros do discurso e a sala de aula.

Por sua vez, os enunciados pertencentes à esfera midiática analisados nos capítulos que compõem terceira parte do livro correspondem: a um cartaz antiviolência sexual infantojuvenil da campanha Faça Bonito; a uma entrevista política realizada pelo Jornal Nacional; a uma charge política de Vitor Teixeira e ao anúncio publicitário Devassa Bem no Lance, da marca de cerveja Devassa.

Por fim, as reflexões associadas à esfera filosófica discutidas nos textos que perfazem a quarta e última parte do livro dizem respeito: ao discurso filosófico carnavalizado de Deleuze e Guattari; a um estudo sobre a responsividade bakhtiniana atrelada à noção de letramento responsivo; ao diálogo existente entre o pensamento bakhtiniano e o foucaultiano e ao diálogo existente entre as propostas bakhtinianas e as butlerianas.

Cabe a ressalva, ao final, de que a organização do presente livro nas esferas ideológicas citadas acima se deu por motivos didáticos. Em outras palavras, trata-se de um gesto científico para dar mais fluidez à leitura, e não motivado pela compreensão equivocada de que há fronteiras duras e intransponíveis entre as esferas. Pelo contrário: elas podem, sim, intercruzar, ligando-se por laços dialógicos. Como tudo o é no pensamento do Círculo de Bakhtin.

Boa leitura!

Os Organizadores.

Notas de rodapé

[1] Conforme sublinha Grillo (2010), há certa flutuação terminológica atinente ao conceito em foco, na medida em que temos as seguintes denominações registradas: esfera da comunicação discursiva, da criatividade ideológica, da atividade humana, da comunicação social, da utilização da língua e da produção ideológica (ou esferas ideológicas).

[2] BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 261-306

[3] GRILLO, Sheila. Esfera e campo. In: BRAIT, Brait (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 133-160.

[4] VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

[5] SIPRIANO, Benedita França. Popular e tradição na esfera artístico-musical: uma análise dialógica sobre heterodiscurso e processos de construção de sentidos a partir da obra de João do Vale. 2019. 318 f. Tese (Doutorado Acadêmico em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2019. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2021

Ano de lançamento

2021

ISBN

978-65-5869-641-4

ISBN [e-book]

978-65-5869-642-1

Número de páginas

324

Organização

Elayne Gonçalves Silva, João Batista Costa Gonçalves, José Alberto Ponciano Filho

Formato