Ensaio sobre a cidadania global
Autoria: Alekssey Di Piero
APRESENTAÇÃO
A redação do ensaio1 que seguirá teve origem em questionamentos levantados ao redor de uma nova perspectiva educacional assumida pela Organização das Nações Unidas para a Educação e a Ciência (UNESCO) a partir do ano de 2012. Trata-se da Educação para a Cidadania Global, abordagem pedagógica que procura estabelecer coesão entre diferentes práticas educacionais adotadas ou apoiadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e sua rede de entidades filiadas, bem como por uma miríade de outras instituições governamentais e não governamentais inspiradas diretamente pelo seu conjunto de valores. Reimers et al. (2016) explicam que a abordagem foi construída ao longo de vários anos de pesquisas e discussões por parte de educadores de diferentes países distribuídos por todos os continentes, e se beneficia da clareza de pressupostos norteadores articulados diretamente com as metas estabelecidas pela agenda das Nações Unidas para o século XXI, em especial as projeções que seguem até o ano 2030.
Essa iniciativa chama a atenção ao carregar consigo o desafio duplo de constituir-se como sujeito global e, ao mesmo tempo, pensar o global enquanto objeto, comprometendo-se com a ambição de alargar a concepção de cidadania a essa escala, por via da educação. A cidadania global aparece ali como uma extensão às cidadanias nacionais, limitadas na capacidade de produzir identidades suficientemente empáticas, tolerantes e inclinadas à paz no cenário complexo do século XXI, em que o convívio íntimo das diferenças culturais e desigualdades sociais e econômicas é uma realidade. As práticas educacionais para a cidadania global surgem então associadas à construção do sentimento de pertencimento e responsabilidade à Terra e à humanidade, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
Tal caracterização pode levar a crer na submissão algo previsível da nova perspectiva ao escopo teórico e prático da educação na modernidade. Sob influência colonialista e iluminista, a educação moderna procurou a universalização da civilização ocidental por meio do desenvolvimento do ser humano concebido predominantemente como racional e ahistórico. Fortemente calcadas no ideal de perfectibilidade, as políticas educacionais adotadas nos últimos duzentos anos só raramente se afastaram do espírito das revoluções burguesas e poder-se-ia imaginar em que a Educação para a Cidadania Global se diferenciaria das idealizações originais de Rousseau (1979) e Condorcet (2008). Para encaminhar o problema, construiu-se a investigação em torno da seguinte pergunta: há algum potencial emancipatório na Educação para a Cidadania Global e, caso haja, como pode ser melhor aproveitado? A análise mais detida da questão despertoupara a hipótese da presença de um potencial genuíno para a emancipação no cerne do conteúdo proposto por essa nova abordagem, emerso das particularidades do atual momento histórico: a possibilidade de superação de um traço paradoxal que têm permeado o humanismo liberal e os direitos humanos desde suas origens.
A fim de torná-lo mais claro e exequível, dividiu-se o ensaio em duas partes, que objetivam responder adequadamente aos dois momentos da pergunta central. A primeira parte procura demonstrar como a Educação para a Cidadania Global pode ser inscrita em um projeto de transição civilizacional, configurando-se como uma proposta emancipatória radical para o século XXI. Os objetivos a serem cumpridos nessa parte marcam o percurso dissertativo. São eles: a) Partindo das reflexões de Jürgen Habermas, explicitar a condição patológica ou paradoxal da modernidade, em sua dinâmica de imposição coercitiva dos valores democráticos; b) Assumindo a linha de raciocínio de Boaventura de Sousa Santos, abordar o esgotamento da modernidade e o entendimento da pós-modernidade como período de transição, diferenciando as globalizações hegemônica, contra-hegemônica e não-hegemônica; c) Tomando o guia pedagógico da UNESCO Educação para a cidadania global: tópicos e objetivos de aprendizagem como objeto de investigação, analisá-lo segundo a perspectiva das Epistemologias do Sul; d) Seguindo o pensamento de Paul Raskin, lançar luz sobre o significado da Grande Transição e sugerir a construção do Movimento para a Cidadania Global como tarefa principal da Educação para a Cidadania Global.
A segunda parte do ensaio busca oferecer um aporte à Educação para a Cidadania Global, tecendo considerações sobre a importância da educação sexual no projeto contrahegemônico de transição. Não se trata de uma escolha arbitrária: defende-se o potencial libertador da educação sexual no enfrentamento da biopolítica moderna, contribuindo para a reapropriação dos corpos biológicos aos contextos das formas-de-vida culturais do Sul Global. Os objetivos dessa parte são: a) Servindo-se do caso brasileiro como exemplo, esclarecer a associação entre fundamentalismo religioso e nacionalismo na formação do ultraconservadorismo contemporâneo, evidenciando assim sua cruzada contra a educação sexual; b) A partir das concepções de Martin Heidegger e Giorgio Agamben, apontar as afinidades entre propriedade e cidadania no Estado moderno, apresentando a educação sexual como campo destinado ao pensamento capaz de emancipar da cisão entre vida nua e forma-de-vida presente nas cidadanias nacionais; c) Demonstrar o entrelaçamento dos conceitos forma-devida, presente em Agamben, e mundo-da-vida, desenvolvido em Husserl e Habermas, com vistas ao aprofundamento do entendimento sobre os saberes e racionalidades nas formasde- vida do Sul Global; d) Somando as reflexões anteriores às contribuições de Simone De Beauvoir, explicitar o sentido libertador da educação sexual frente as relações entre violência, patriarcado e soberania, enfatizando sua importância em uma Educação para a Cidadania Global pensada a partir das Epistemologias do Sul.
O exame da temática proposta só foi possível a partir da consulta de algumas obras principais que tornaram-se intimamente relacionadas ao desenvolvimento do ensaio: Sobre a constituição da Europa (2012) e O discurso filosófico da modernidade (2000), de Jürgen Habermas, que permitiram a compreensão dos paradoxos da modernidade; Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial (2018) e Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994) de Boaventura de Sousa Santos, que elucidam o pensamento contra-hegemônico necessário à análise da contemporaneidade; a já mencionada Educação para a cidadania global: tópicos e objetivos de aprendizagem (2016), da UNESCO, que sintetiza os pressupostos e práticas da Educação para a Cidadania Global; Great Transition (2002) e Journey to Earthland (2016), de Paul Raskin, que analisam cuidadosamente os cenários civilizacionais de transição; Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo (2009) e Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder (2018) de Karen Armstrong e Andrea Dip, respectivamente, que esclarecem os contornos do fundamentalismo religioso dos pontos de vista conceitual e prático; Meios sem fim: notas sobre a política (2015), de Giorgio Agamben, que aprofunda o entendimento da vulnerabilidade da vida nas soberanias modernas; a edição bilíngue de Ser e Tempo (2012), de Martin Heidegger, obra monumental que esclarece a estrutura ontológica do Dasein; O Segundo Sexo (2016), de Simone De Beauvoir, que explicita de uma perspectiva existencialista a anulação do gênero feminino através da história e Educação sexual: princípios para a ação (2011), artigo essencial de Ana Cláudia Bortolozzi Maia e Paulo Rennes Marçal Ribeiro, que oferece parâmetros para uma educação sexual verdadeiramente emancipatória.
Ano de lançamento | 2019 |
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Autoria | Alekssey Di Piero |
ISBN | 978-85-7993-787-3 |
ISBN [e-book] | 978-85-7993-824-5 |
Número de páginas | 196 |
Formato |