Itinerário do tempo

Jonas Leite

NA FÍMBRIA DAS PALAVRAS

À travers les mots passait encore un peu de jour.
Maurice Blanchot

O livro Itinerário do Tempo, escrito pelo poeta, professor e amigo Jonas Leite, vem a público num momento em que a reflexão e a contemplação poéticas ganham novo fôlego por causa do isolamento social, que se tornou medida sanitária protocolar nesse contexto de pandemia da COVID-19. Assim, ter tempo para ler, ter tempo para refletir e ter tempo para resistir, em certa medida, também se tornaram regras protocolares para não adoecer, para não ser reduzido ao ordinário e poder ressignificar o tempo que se amontoa em nossa existência com bastante resiliência. No entanto, o tempo da poesia é outro, que responde por outra lógica a esses mesmos estímulos, sem também se dissociar da atualidade.

Acompanho o processo de criação poética de Jonas Leite desde 2008, quando nos conhecemos entre cigarros, álcool e muita música comprada a R$ 2,00 numa Jukebox disponível no bar da finada Rose, localizado no Açude Novo, Centro de Campina Grande. Desde então, tenho testemunhado uma produção incessante e uma felicidade apropriada, e inquieta, à interlocução aberta de sua criação artística. Talvez, por isso, a autocrítica e o distanciamento analítico de seus poemas resultaram de forma eficiente na reanálise de versos, vocábulos e efeitos melódicos imprecisos, garantindo-lhe sobremaneira a subserviência intelectual ao feito estético, que é uma aptidão tão necessária à elaboração de uma obra poética.

De tudo sempre conversamos, sexo, droga, relacionamento, política, viagens… Mas, quando a noite se prolongava, era o universo regente das artes e da literatura que nos enlevava, especialmente. Jonas sempre teve uma facilidade que muito me invejava e cativava, paradoxalmente, para recitar poemas decorados, inteirinhos. Sobre o assunto, eu tenho impressão que a calibragem do álcool sempre lhe favoreceu a inflexão, o aparato articulatório e as próprias cordas vocais, toda vez que de forma indelével recitava Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Maria Teresa Horta, Lúcio Lins, Orides Fontela, Roberto Piva, Cícero Dias e tantas outras raridades de nosso apreço, que eram lidas ou recitadas de cor em nossas madrugadas etílicas. Ali, o tempo era suspenso como se nada pudesse importunar sua majestade, a poesia; somente a luz do dia, implacável como sempre, trazia com ela a certeza de todos os compromissos ordinários pendentes.

Assim, de forma oblíqua o tempo presente nesse itinerário poético convida-nos à suspeição de suas próprias coordenadas. O tempo que se inscreve nesse espaço possui um percurso de estímulos visuais, sonoros, sinestésicos, que, não sendo cronológico como o tempo de chegada da comida solicitada pelo aplicativo, aduz o leitor para outro lugar, com outra atmosfera, de suspensão do próprio tempo retido nas horas e nos minutos. O Itinerário do Tempo é um poema completo, mas cada poema pode ser lido separadamente. No entanto, surgem uns poemas sem títulos que criam no conjunto da obra a engrenagem de uma narrativa simbólica, que atravessa todo o poema como uma composição plástica, que se faz de outros poemas, como nas pinturas de Giuseppe Arcimboldo.

Com efeito dramático, a alternância de estado de espírito da voz lírica favorece a leitura dos poemas como narrativa simbólica, que se pode ler: por metáforas, ícones, imagens verbais, índices, em cujos estados de espírito estão presentes e encadeadas todas as emoções disfóricas e eufóricas deste relato do isolamento. Até me arriscaria a concordar com a sagacidade de um amigo nosso, o professor Jackson Cícero, ao perceber que há nesse labor poético propensão à análise dos regimes diurnos e noturnos de acordo com os schèmes das Estruturas Antropológicas do Imaginário (1975), de Gilbert Duran. Por meio de um recorte gestual e performático, a voz lírica atua no isolamento de um distanciamento social que lhe favorece a dramatização dos espaços afetivos da casa, de seus cômodos, de seus móveis, de seus hábitos, como lugar familiar de proteção e abrigo contra as “coisas estranhas” do mundo lá fora, que são desconhecidas e podem por isso mesmo ser bastante perigosas.

Rapidamente, verifico que a atmosfera construída pelos poemas reunidos nesse Itinerário é crepuscular como a aurora ou como o ocaso do sol. E conquanto a emissão lírica transite obstinada de um estado de espírito a outro, sem demora retorna circunspecta à primeira letra no papel vazio, de onde moléculas de gás e luz expandiram o universo criativo do poeta: A cinza do dia / Emula estrelas / No céu preto são os versos que iniciam a obra. Uma luz que freme no firmamento quando emula as estrelas, cobrindo-as como uma aplicação esmaecida, que está ali, mas que logo sumirá no mata-borrão do firmamento, porque a luz anuncia um outro tempo, uma outra página, um outro poema.

Então, acabo de ler esse Itinerário do Tempo nesta manhã iluminada de sol e percebo que, nele, há uma narrativa simbólica insculpindo com luz uma alegoria da vida, em um complexo de matéria arranjada de onde cintila a existência lírica de dias tão perturbadores. De poema em poema, de folha em folha, percebo uma liga poética que revela o sujeito da criação, animando-o como fotografias que capturam (sem prender) o que é naturalmente dinâmico: Um feixe de luz / Entrou pela janela / Rompendo a decisão / De me fechar no quarto. / Ele ficou, perseguiu a dança do sol / Até que a noite apagou / Sua pequena revolução.

Eis aqui um processo orgânico de criação poética que surge com esse feixe de luz, após emular as estrelas e rasgar o véu do firmamento. Esse feixe atravessa a matéria translúcida do vidro e, como uma explosão de átomos, se instala frenético no quarto (ventre fecundo), como um membro vibrátil do próprio sol. Esse feixe de luz é a pena do poeta que desenha a letra e atrai outras letras, convidando-as a se juntarem umas as outras. Todas elas amalgamam-se em palavras, em versos e em ritmos pausados, explorando o silêncio anterior à primeira sílaba emitida, cumprindo sua pequena revolução chamejante e anunciando pari passu o próximo poema, o primeiro com título: Monet.

O Itinerário do Tempo é um livro de poemas repleto de plasticidade. Espaço de cores, luz e sombra. Mas, também, é um espaço abissal de vazios e silêncios. E, assim, porque Há sempre uma névoa / Ou um pano fino / A sabotar a transparência dessa manhã, sou conduzido poeticamente a enxergar (que é mais do que ver!) a opacidade do mundo exterior; a questionar imediatamente a verdade do que vejo e do que sou. Os objetos e a experiência descritível são borrões de realidade que me faz lembrar com nostalgia a Tabacaria de Álvaro de Campos, exatamente quando o poeta enuncia: “Estou hoje dividido entre a lealdade que devo / À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, / E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Assim também acontece nesse Itinerário, quando o poeta afirma: Naquilo que não distingue, imagina. E assim também, como um jogo de percepção, É quase uma clarividência / Ultrapassar o mundo exterior. É como voyeur que assumo essa contemplação de intimidade poeticamente compartilhada, quando me é apresentado o ambiente descrito nos poemas, o dentro da casa: os portaretratos, os gatos e a rotina visível iluminada por essa manhã que suspende o tempo. Por isso, torno-me íntimo  também daquilo que me é dado a contemplar: Hoje acordei primeiro / E dormias plácido: / Braço elevado / Axila à mostra. Com estranha alegria, dou conta de que não existe palavra fora de lugar. E mesmo a ausência de título em muitos poemas parece-me oportuna, como um encadeamento suspenso de sentidos. O vazio do papel ajuda nesse mergulho interno abissal… A emissão lírica penetra essa existência questionadora, operando uma descrição cerebral de tudo que lhe é exterior, num jogo ambíguo que exibe a angústia subjetiva, que é interna, passível de ser apreciada numa imagem verbal: Sem saber se excedo ou falto / Espero: gota e mar.

Então, o desafio de ler esse Itinerário do Tempo é o de sorver cada verso como uma medida questionadora do que é dado a ver. A realidade se impõe intransponível! Muitas vezes, sou conduzido a validar o que vemos nesse relato de intimidades, mas rapidamente sou advertido que a memória não pode ser um repositório de todas as experiências acumuladas ao longo da vida. E por ser disjuntiva, a memória seleciona lembranças enigmáticas de nossa própria experiência. Em “Recuperação da Infância”, leio: Preciso voltar à casa / E ver se consigo me ver novamente / Correndo pelo corredor (…). Nesse poema, a ação de “voltar à casa” é uma necessidade autoanalítica de se reconhecer num passado irrecuperável. Porém, a mágoa que atormenta a voz lírica, tão consciente de si, precisa ser superada ou ressignificada no próprio tempo. É preciso enfrentar essa dor tensionada por tanto tempo e cindi-la de uma vez para sempre: Quem sabe não deixo lá / A mágoa desse tempo / E dessa idade.

Jonas Leite é um poeta que sabe o que quer do ofício que defende nesse Itinerário do Tempo. Embora muito pouco tenha de metalinguagem, a poesia encontrada nesta publicação é plástica e movente, como uma poética urdida de luz. A emissão lírica é inquieta, porque condensa inconformações em quase todos os poemas. A melodia é contida e dispensa as rimas. Bordeja-se intermitentemente um objetivo que não se alcança. Por esse motivo também, esse poema fala da incompletude do ser: No começo Sísifo pensou / Maneiras de escapar / Mas percebeu logo / Que a eternidade / É um pavor que os homens / Só desejam por não poderem ter. Jonas Leite escreve esse Itinerário do Tempo como se dissecasse os sentidos dos objetos, como numa anatomia do desejo presente e pulsante, que é ao mesmo tempo intransigente e selvagem. Mas sabe ele que tais fenômenos precisam ser acolhidos em palavras… palavras de uma poética do isolamento urdida de luz e contenção. O que mais posso dizer? O poema é lindo, busca a precisão verbal de sua própria realização e confidencia que não existe palavras para tudo. O livro está pronto e este é o momento de seguir sua natureza de livro e significar em outras leituras, em outros tempos, em outras circunstâncias.

Ricardo Soares
Campina Grande, 10/12/20.

Ano de lançamento

2021

Autoria

Jonas Leite

ISBN

978-65-5869-210-2

ISBN [e-book]

978-65-5869-211-9

Número de páginas

173

Formato