Poder, dizer, resistir: ensaios em análise do discurso

Ana Maria de Fátima Leme Tarini, Jacob dos Santos Biziak

APRESENTAÇÃO

dentro de muito poucas horas

a censura

sobre a nossa capacidade de predizer o futuro

cairá

e não nos restará proteção

leio isto num manual de instruções

e penso novamente na hipótese da poesia

(Dora Ribeiro, O poeta não existe)

Este livro é uma proposta para apresentar, refletir, discutir e analisar diferentes possibilidades de trabalhos para os quais podemos nos apropriar dos estudos da Análise de discurso francesa (AD). Pensando nisso, como propor um volume que algum diferencial ofereça em meio a tantos outros que já existem em torno dessa referência teórica? Antes, trata-se de uma reunião de textos cuja proposta é analítica; ou seja, pensando gestos de leitura em relação a materialidades que nos façam pensar o funcionamento da língua e da subjetividade, principalmente, em relação às questões da interpelação ideológica e da resistência. Afinal, todo sujeito, necessariamente resiste àquilo com que se identifica, em uma produção interminável de relações de identidade e diferença, nas quais o sentido é sempre um “mais tarde”, sempre uma promessa de futuro intervalar.

Portanto, além de uma proposta analítica, pensamos na presença de todo um material – que, por sua força, (re)existe – em relação a momentos cuja historicidade reclama incertezas que nos levam a (re)produzir entre letra e silêncio, errando (ambíguos!) sentidos. Sendo assim, acreditando que não há sentido possível antes da emergência de um sujeito, queremos refletir sobre as infinitas possibilidades de se sentir estrangeiro em uma língua que nos constitui e faz dizer em determinadas condições: paradoxalmente, somos (des)feitos pela língua que nos faz nascer à custa de estarmos sempre em um lugar perdido para sempre, “do o/Outro”. Uma língua que nos faz enunciar e não dizer, concomitantemente, entender e estranhar, ser e, portanto, desejar. Ainda que em um tempo obscuro – aliás, há temporalidade que assim não seja? – como os sujeitos podem resistir? Em quais termos? Como é possível foracluir sua identificação e, ao mesmo tempo, a não reconhecer?

Dessa forma, acreditando que este volume opta por propor mais teor analítico do que revisitação de teorias, intentamos refletir em quais pequenas, mas importantes, possibilidades se faz Análise de Discurso, hoje. A reunião de artigos de diversos pesquisadores desta teoria e que trabalham com diferentes temáticas mostra um pouco de como a AD tem sido tratada, abordada, referenciada no Brasil.

O capítulo SUJEITO, INTERPELAÇÃO IDEOLÓGICA E RESISTÊNCIA propõe uma reflexão teórica no campo da Análise de Discurso de linha francesa (AD) acerca dessas três categorias-temáticas elencadas para o livro e alguns excertos para o qual se lança um breve olhar analítico. Em AD busca-se constantemente apresentar práticas, metodologias e possibilidades de análise, comumente denominadas gestos de leitura, para compreender os efeitos de sentido para os sujeitos do/no discurso. Mas, neste artigo, a autora “escolheu” trazer reflexões teóricas, não deixando de reconhecer que é na materialidade discursiva, isto é, no funcionamento da linguagem, que se pode observar o discurso e a determinação das condições de produção e são os discursos que constituem sujeitos e são suportados por eles nas relações de linguagem, o que significa que os discursos são processos de identificação tanto do sujeito quanto de construção da realidade e das possibilidades de argumentação. Sendo a construção discursiva sempre uma tomada de posição.

No capítulo SUJEITO(S) DE DISCURSO: [NA FRONTEIRA] ENTRE RESPONSIVIDADE E O ASSUJEITAMENTO, autor e autora trazem à luz a discussão a respeito da constituição do sujeito na análise de discurso. Sabe-se que não é somente a questão do sujeito que é colocada em evidência. Além destes pontos tensionais, do sujeito dialógico ou do sujeito assujeitado, há outros pontos teóricos que proporcionam aproximações e afastamentos entre as linhas teóricas de análise de discurso, no caso, a bakhtiniana e a pecheutiana e, neste trabalho, a proposta é discutir a questão da constituição do sujeito nos dois campos de análise do discurso, apontando suas características, semelhanças e divergências.

No capítulo NEGAÇÃO E RESISTÊNCIA: #EleNão, o autor objetiva, com este estudo, refletir sobre uma das formas de fazer frente ao instituído/estatuído interpelativo: a negação. A negação se faz sobre o pressuposto da afirmação precedente, assim como esta se justifica tendo como horizonte a negação proferida. Só se diz ‘não’ para negar o ‘sim’ e só se diz ‘sim’ para negar o ‘não’. ‘Sim’ e ‘não’ nunca são absolutos, mas sim a contraparte contraditória e polêmica do Outro/Sujeito. Ele alerta o leitor que aqui trata da negação de resistência positiva, que busca o irrealizado, e não aquela que é movida pelo conformismo e pela passividade estagnadora. E neste sentido, compreende o Movimento Feminista, como a forma de resistência ao poder patriarcal, opondo-se ao controle exercido sobre o feminino, reivindicando saberes, lugares, poderes, autonomia para as mulheres.

Em FEMINILIDADE E FEMINISMO: RESISTÊNCIA AO CONTROLE PATRIARCAL?, as autoras, assim como em todos os artigos, também mobilizam como perspectiva teórica a AD, para refletir sobre os processos discursivos que permitiram a emergência de formas de resistência das mulheres, no interior do poder patriarcal, possibilitando a luta pela equidade de gênero. Dessa forma, como mostrarão com este texto, o discurso feminista poderia ser compreendido como a falha que produz rupturas com o discurso estabilizado que coloca a mulher como “bela, recatada, do lar”, promovendo mudanças, ressignificações, ou seja, como um acontecimento discursivo capaz de perturbar a memória discursiva, produzindo novos significados, novas redes de sentido, possibilitando conquistas ao longo da história da luta das mulheres.

O artigo POSIÇÕES-SUJEITOS DISTINTAS NOS FEMINISMOS: A RESISTÊNCIA NO FEMINISMO NEGRO objetiva desenvolver reflexões sobre os processos discursivos do seriado brasileiro Coisa mais linda (2019). Os dizeres das personagens Malu e Adélia nas sequências discursivas (SD) de um diálogo exibido no terceiro episódio da série são analisados a fim de trazer à tona a complexidade problemática da interseccionalidade: interfaces entre gênero, raça e classe. Fato é, que, faz-se necessária a diferenciação entre o Movimento Feminista e o Movimento Feminista Negro que neste texto é apresentado em duas facetas distintas: o Feminismo Branco Hegemônico e o Feminismo Negro de resistência. De tal modo que, que a autora apresenta duas FDs, uma para cada faceta do feminismo, nas quais as personagens são inscritas ou se inscrevem, dois feminismos distintos. Malu, mulher branca, é apresentada como rica, e Adélia, mulher negra, é pobre. Ao longo da série vai se tecendo a trama, as posições-sujeito e os lugares ocupados pelas mulheres.

No capítulo ATRÁS DA PORTA E O DISCURSO DE AMOR: UMA RELAÇÃO EU-OUTRO, o autor propõe uma análise do texto “Atrás da porta”, de Chico Buarque, explorando como a subjetividade se constitui por meio de uma relação de alteridade entre o eu e o outro. Mobilizando como referenciais teóricos a Psicanálise e a Análise de Discurso de Pêcheux (como no artigo anterior), pretende discutir como o discurso de/sobre amor funciona no texto e faz funcionar efeitos de um feminino em submissão a um outro, masculino, mostrando como as fronteiras entre o amor e o ódio são tão fortes quando há uma relação (de amor) entre um eu e um outro. Nesse texto, dividido em dois momentos, discute-se o feminino como discurso, marcado pelo funcionamento do estético e realiza-se uma análise de “Atrás da porta”, mostrando como este discurso de/sobre amor funciona e diz sobre um feminino e sua relação com um outro, masculino.

A MULHER NA CULTURA POPULAR MARANHENSE: ANÁLISE DISCURSIVA EM LETRAS DO BREGA é um artigo que mostra que trabalho do analista de discurso não é analisar o texto somente sob o aspecto da língua, nem da gramática, sabendo-se que tais questões podem ser contempladas em um estudo discursivo, a Análise do Discurso se preocupa em como a linguagem produz efeitos, ligada ao mundo e seus processos históricos. Sabendo que a linguagem não é algo transparente, mas opaca por natureza, a AD se ocupa em analisar como determinados textos significam em determinadas situações, em certos contextos. Objetivam analisar o discurso machista e como este retrata a mulher nas letras de músicas do “estilo” brega. Para isso, trazem para a discussão alguns conceitos acerca de temas que envolvem a pesquisa, como os que envolvem a brega e o machismo, bem como questões de cultura e cultura popular, contextualizando-os para que se possa compreender suas origens e analisar os recortes discursivos.

No artigo A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (CNV) E A PRODUÇÃO DISCURSIVA DOS EFEITOS DE VERDADE: O POLÍTICO E SUAS (IN)DETERMINAÇÕES, o autor analisa o(s) discurso(s) referentes à Comissão Nacional da Verdade (CNV), Lei n⁰ 12.528/2011, que surgiu com o propósito de investigar violações dos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil, com ênfase no período em que o país sofreu um dos episódios mais lamentáveis de sua história: a ditadura civil-militar instaurada após o Golpe. Este artigo busca uma leitura discursiva dos efeitos de verdade engendrados pela Lei n⁰ 12.528/2011 em sua intersecção com outros discursos, sobretudo, com o discurso político. Pensar discursivamente a verdade a partir de uma lei implica reconhecer o curso para a constituição de esse efeito de verdade. No caso desta lei, a produção discursiva da verdade pode ser verificada no entrecruzamento de discursos jurídicos, políticos e humanitários, que se submetem a coerções entre si e, com isso, possibilitam efeitos de verdade. A verdade se constitui no cerne da lei que instituiu a CNV. Entretanto, de que forma isso se dá?

Em AS VOZES DISCURSIVAS DE PROFESSORAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA SOBRE O LIVRO DIDÁTICO, os autores e a autora afirmam que a motivação para o desenvolvimento deste estudo é encontrado no ensino de cultura e língua estrangeira em espaços institucionalizados, que são mediados por materiais didáticos, especialmente o livro didático. Pesquisas recentes sobre o papel deste material têm mostrado que é um recurso do qual dispõem professores e alunos no âmbito do ensino superior, visando o contato com a língua e a cultura estudadas, de forma que destinar um lugar para a escuta de vozes de docentes sobre o livro didático corresponde a essa perspectiva. Considerando essas delineações preliminares, o estudo tem como objetivo analisar as concepções teórico-metodológicas de docentes formadoras (usuárias (ou não) de obras didáticas) acerca do papel do livro didático de língua estrangeira adotado numa universidade.

Temos, então, um material heterogêneo que reflete a própria condição de a língua existir: entre identidade e diferença para fazer significar. As leituras, então, lançamos ao infinito dos encontros que darão novas existências aos textos, aqui, reunidos. O importante é que a pergunta não se cale e nem deixe de ecoar significações: como é possível SER no reconhecimento paradoxal de nossas próprias (im)possibilidades como sujeitos (re)existentes?

POR ANA MARIA DE FÁTIMA LEME TARINI, JACOB DOS SANTOS BIZIAK E JOÃO CARLOS CATTELAN.

Ano de lançamento

2019

ISBN [e-book]

978-85-7993-721-7

Número de páginas

184

Organização

Ana Maria de Fátima Leme Tarini, Jacob dos Santos Biziak

Formato